Às vezes, uma mulher resolve se conhecer melhor
Laerte melhora com o tempo. Depois de revolucionar os quadrinhos brasileiros nos anos 1980 com os Piratas do Tietê, volta a surpreender.
Laerte Coutinho está concentrada a desenhar com uma esferográfica cor-de-rosa de tinta azul uma das personagens da famosa BD Piratas do Tietê na vinheta de um comic jam. A folha de papel já passou por vários cartoonistas que participam na festa dos 29 anos da Tertúlia de BD de Lisboa, um jantar a decorrer numa das salas da Casa do Alentejo.
Num ápice, as unhas impecavelmente pintadas de vermelho de Laerte desaparecem dentro da sua carteira. O anel, que traz num dos dedos, tilinta enquanto procura o seu estojo de maquilhagem. Mais tarde, a sombra para os olhos dá um efeito pastel no desenho, o lápis preto dos olhos permite linhas mais duras e o bâton vermelho dá o toque final: laerteano.
Na mesma mesa, Laila, a sua filha, e os autores de BD brasileiros André Diniz (autor de Morro da Favela) e Laudo Ferreira Jr (autor de Yeshuah — Onde tudo Está), olham divertidos para todo este processo. Laudo até brinca por ter trazido o seu estojo de ilustrador (com lápis, pincéis, canetas de vários tipos): assim se vê quem são os bons, os que não precisam disso!
Mais tarde, enquanto Laerte tenta comer uma sopa à alentejana, aproximam-se fãs de longa data. São participantes da Tertúlia de BD de Lisboa fundada por Geraldes Lino, na sua maioria homens, alguns trouxeram colecções inteiras da Chiclete com Banana, a revista onde Laerte e os cartoonistas Angeli e Glauco (assassinado em 2010 quando era líder espiritual da doutrina do Santo Daime) inovaram nos anos 1980 e mudaram a banda desenhada brasileira para sempre. Ali nasceram personagens como Os Skrotinhos e Rê Bordosa (de Angeli), Geraldão (de Glauco) e os Piratas do Tietê ou o super-herói Overman (de Laerte).
Foi aliás numa das histórias de os Piratas do Tietê (cuja saga está publicada em Portugal em três volumes pela editora Jacaranda/Devir) que Laerte usou Fernando Pessoa como personagem. A história chama-se O Poeta e foi publicada na revista Circo em Agosto de 1987. “Não sou uma grande leitora de poesia. Gosto, sei dar o devido valor mas não sou nem uma grande leitora nem conhecedora de poesia. Pessoa no Brasil é muito conhecido, faz parte dos shows de Maria Bethânia que sempre declama muitas coisas dele, alguns versos são muito populares e nessa época eu estava lendo uma colectânea O Eu Profundo e Outros Eu com vários poemas dele”, diz, lembrando que Fernando Pessoa aparece “numa situação horrível” cujo cenário é o rio Tietê, “que quando atravessa São Paulo é um esgoto a céu aberto”.
“Fui lendo aquilo e foi-se formando na minha cabeça a ideia de utilizar o Pessoa na história, como uma figura meio mágica. No começo, ele está tentando se suicidar… sem sucesso [risos]. Pessoa tem muito a ver com a forma como depois a história se desenrola. Ele é uma figura esquiva, meio imprecisa — não é só o facto de ter vários heterónimos, a vida dele é cercada de pequenos mistérios. Uma parte da poesia dele é em código, é ocultista, existem episódios da vida dele com o mago [britânico] Aleister Crowley, o episódio da Boca do Inferno — esses dados colaboraram na construção do personagem da minha história. É a minha versão do Pessoa.”
Infelizmente, Laerte, que nasceu em S. Paulo em 1951, ainda não teve ocasião de “ambientar” alguma das suas histórias em Lisboa. Mas depois de pensar um pouco lembra-se que na verdade já o fez. “É um episódio muito rápido, numa história antiga chamada Bye, bye Brasil, de um sujeito que sai do Brasil tentando se dar bem pelo mundo. Numa das andanças, passa em Lisboa e fica trabalhando na porta de uma boîte. Mas é muito rápido, não tem cenários de Lisboa, só uma menção. Depois disso, ele vai tentar matar o ayatollah Khomeini e se dá mal”, conta a rir-se.
Quando viaja, Laerte gosta de ficar o mais tempo possível num só lugar. “Viajo muito mal. À medida que o tempo passa, não sei se é a idade, se sou eu que estou ficando louca, mas não tenho tido muito boa relação com isto de me deslocar do meu lugarzinho. Mas gosto muito de Portugal, a ideia de vir para cá era muito tentadora. Eu queria conhecer Beja também, onde foi o Festival Internacional de Banda Desenhada [onde participou]. Beja tem coisas encantadoras, ficaria a semana inteira lá. Mas tinha amigos a encontrar em Lisboa, queria revê-los, queria dar uma olhada na cidade. E a minha filha, Laila, também queria conhecer. E ela veio comigo nesta viagem”, conta. Comeram bacalhau, foram aos fados e passearam por Lisboa. Na viagem de táxi, a caminho da Casa do Alentejo, Laerte pergunta se a estátua de Fernando Pessoa, na Brasileira, fica por perto. Rapidamente, Laila responde: “Ó pai, você não lembra? É no Chiado, estivemos lá ontem.”
Viagem pelo planeta das mulheres
A última vez que Laerte esteve em Lisboa foi “noutro século”, lembra-se de ter vindo em 1999 ou talvez fosse 2000. Veio a convite da editora Devir e além de lançamentos, tardes de autógrafos, deu “umas voltas” para ficar a conhecer a cidade e arredores. “Era ainda no tempo do escudo”, recorda. Era também o tempo em que Laerte ainda não tinha assumido a sua identidade feminina. Nem tinha dado a entrevista à revista brasileira Bravo! em que tornou público que, “dependendo da ocasião”, se vestia “como mulher dos pés à cabeça”, mesmo em lugares públicos. A revelação aconteceu em Setembro de 2010. “De início, meus filhos, minha namorada e meus amigos chiaram. Agora, já se acostumaram. Ou quase. [risos]”, confessava na época ao jornalista Armando Antenore da Bravo! e falava do prazer “indescritível” que estava a sentir ao fazer esta “viagem pelo planeta das mulheres”.
Dois anos depois, Laerte partilhou o palco da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) com o cartoonista Angeli. Respondeu a todas as perguntas vindas do público, até a quem queria saber onde tinha comprado o vestido que trazia. Com o amigo e parceiro de vários projectos, anunciou a tentativa de criação de uma revista conjunta que para já não chegou a acontecer. “Ainda está nesse parto dificílimo porque somos duas velhas, eu e o Angeli! (gargalhadas) Não vivemos mais os tempos bíblicos em que senhoras de 120 anos davam à luz tranquilamente…” E imediatamente começa um diálogo, fazendo vozes diferentes: “— Ah, a sua mulher vai parir. — Mas a minha mulher tem 97 anos! — Não, tudo bem, confia no seu Deus. Vai para casa que ela está grávida...” Ri-se com o diálogo que acaba de inventar e conclui: “Mas hoje em dia isso é difícil. O Angeli é uma pessoa extraordinária, com uma enorme capacidade de trabalho, mas também está cansado. A gente está tentando viabilizar um projecto editorial que nos deixe numa posição de conforto e que permita que se possa contar com uma equipe. Não está muito fácil, não, mas está indo.”
Outras das BD famosas do trio — Laerte, Angeli e Glauco, a que se juntou em 1994 o cartoonista Adão Iturrusgarai — é Los 3 Amigos, que vai ser reeditada pela brasileira Companhia das Letras, que está a organizar também uma antologia de toda a obra de Laerte que sairá para o ano. Quando perguntámos a André Conti, editor da chancela Quadrinhos na Cia que está a trabalhar nestes livros, qual a importância da obra de Laerte, ele diz: “É uma resposta dificílima porque, como todo o grande artista, é difícil precisar exactamente o que há de especial em sua obra. No sentido de que, para cada ângulo que olhamos, estaremos fatalmente deixando de lado outros traços geniais da obra do Laerte.” O aparecimento de Laerte nos anos 1980 “foi uma revolução, porque, entre centenas de coisas, apontava para onde os quadrinhos podiam ir depois da abertura política”, afirma André Conti. “Ora ácidas, ora críticas, ora líricas e ora hilariantes, as tiras desta época propunham uma linguagem nova e enérgica para os quadrinhos, mas sem que ele parecesse estar tentando realizar essa operação, o que conferia ao trabalho um frescor inacreditável.”
A BD Los 3 Amigos saía na Folha de S. Paulo, jornal para onde Laerte continua a colaborar aos 63 anos (está lá desde 1991) e onde além de uma charge (ilustração satírica sobre a actualidade) na página de Opinião, mantém a Laertevisão, charge que sai aos sábados na Ilustrada (suplemento cultural da Folha) e uma tira diária. Esta continua a chamar-se “Piratas de Tietê” mas desapareceram as personagens. “Essa tira, estou trabalhando nela de maneira livre. Não tenho mais regras a seguir. Às vezes, as tiras supõem uma sequência, outras vezes não.” Laerte acredita que o facto de manter um blogue — Manual do Minotauro — ajuda o leitor a localizar-se. “Se está havendo uma sequência e o leitor perdeu um dia ou dois, pode ir ao blogue e vê.” Mas, sinal dos tempos, a cartoonista já reparou que muita gente vê o blogue e não vê o jornal. “Achava que o blogue ia funcionar como auxílio ao leitor do jornal, mas não é bem assim”, lamenta.
Para o editor André Conti, “de certa forma, a fase actual do Laerte também muda o jogo, principalmente por abandonar a forma que ele mesmo havia radicalizado. Como se o radicalismo lá de trás tivesse ficado estanque.” “Ao abrir mão do humor clássico, da lógica, enfim, de todas as tradições da tirinha de jornal, o Laerte criou um universo riquíssimo numa linguagem riquíssima, de uma liberdade inacreditável. Naqueles três ou quatro quadros, ele consegue falar de tudo, sempre num tom pessoal e num ângulo incomum. Fora que desenha para o diabo, e o traço só melhora com o tempo”, defende o editor da Companhia das Letras.
Diferente das outras meninas
O que aconteceu é que ao longo dos anos Laerte começou a colocar em dúvida a ideia que tinha do que é o humor. “Estou em crise com o humor também”, afirma. “Passei por um processo de mudança interna que me obrigou a rever o modo como fazia as tiras e me fez, por exemplo, abandonar todos os personagens. Fiz uma grande reforma. Só ficou o Hugo.”
E há uma razão para isso. Hugo Baracchini, que foi criado nos anos 1990, é o seu alter-ego e desde 2004, quando resolveu vestir-se de mulher, é também a Muriel. “Ele já havia se travestido várias vezes, com pretextos vários, para fugir da máfia ou por alguma coisa. Sempre dentro desse recurso da comédia em que a pessoa se modifica em função de uma ideia, de uma necessidade de se disfarçar, o Perna-longa [Bugs Bunny] ou o Pica-pau muitas vezes se travestem e o Hugo também. Só que nesse dia ele se veste, se depila, se maquilha, põe um vestido e sai à rua e só faz esse comentário: ‘Às vezes, um cara tem que se montar’.”
Em português do Brasil, explica Laerte, “montar” é uma palavra que se usa especificamente para o travestismo. Quando essa BD saiu no jornal, recebeu um email. “Algumas amigas minhas que são homens que se travestem já estavam de olho na tira porque toda a hora o Hugo se travestia. E me escreveram perguntando se não queria conhecer o grupo delas”, o BBC — Brazilian Crossdresser Clube. “Nós fazemos isso, talvez você queira fazer também…”, disseram-lhe. “Eu fiquei maravilhada com essa possibilidade sim, estava a fim e descobri que estava a fim por causa de uma personagem. Engraçado isso”, conta.
E começou então todo um processo de transformação. “Comecei de certa forma, porque no ano seguinte morreu meu filho Diogo [aos 22 anos, no Carnaval de 2005, num acidente de carro]. Antes, eu estava começando já a ir comprar coisas às escondidas. Ia no supermercado, comprava uma calcinha, depois comprava uma sandália de salto, mas estava indo já. Mas quando ele morreu fiquei confusa. Porque a ideia da proibição, do pecado, do crime, da doença, ainda é subliminar, no meu inconsciente ainda funciona. É muito forte isso. Então suspendi o processo da transgeneridade durante quatro anos — uso essa palavra meio complicada, mas é mais precisa — e quando então já não aguentava mais porque sentia uma pressão interna muito grande, falei ‘agora eu vou’, e fui.”
Há uma história que Laerte criou nos anos 1980, A insustentável leveza do ser, que foi publicada na revista Circo (e no livro Histórias Repentinas, ed. Jacaranda/Devir) que pode ser vista como uma antevisão do que viria a acontecer mais tarde. Quando começou a história, Laerte não sabia para onde ia. Quis partir de uma situação cliché, da aparente normalidade na “rotina tediosa” de uma família, em que um pai chama o filho e lhe diz que precisam de ter uma conversa. O filho está “meio entediado” e de repente começam revelações cada vez mais surpreendentes. “É uma história curta, uma farsa, tem uma estrutura quase surrealista e foi até ao fim muito bem. Eu tinha uns dois ou três finais que estudei rapidamente como fazer e esse me pareceu melhor.”
As relações surpreendentes vão acontecendo em sequência. “Afinal, o pai não é pai, na verdade é uma tia e tem tetas enormes. E isso já vai deixando o menino surpreendido e assustado. A mãe não é mãe dele. É o leiteiro, disfarçou-se a vida inteira de mãe dele. A irmã é uma actriz que foi contratada. O mundo vai caindo, a pele dele não é a pele dele, ele é um garoto negro. Era isso que o pai lhe queria contar, a realidade, como é a vida: ‘Agora vai à luta, o mundo é seu.’ E ele vai andando na direcção do horizonte e dá com o nariz no muro porque todo o horizonte era um cenário. E o pai ainda tenta avisar: ‘Olha, o mundo é falso!’ Aliás, tem um filme com a mesma ideia, o The Truman Show, mas a minha história veio antes!”
Passadas décadas, Laerte também teve de contar aos filhos (de diferentes casamentos) e aos pais a transformação por que estava a passar. Não foi de um dia para o outro. Primeiro apareceu com unhas pintadas, depois com brincos, pulseiras e bijuteria colorida. “Foi menos traumático do que nessa história. Meus pais, meus filhos e minha namorada na época se surpreenderam, apresentaram suas críticas e suas opiniões também, mas tudo se passou com muita civilidade.
Ninguém perdeu afecto, ninguém se distanciou.” Pelo contrário, considera Laerte. “Eu não sabia bem o que esperar. Meu pai é uma pessoa liberal, mas é conservadora também. Para ele, a transgeneriedade, a homossexualidade, nada disso são coisas normais e plenamente aceitáveis. São coisas que ele sabe que existem mas prefere que seja ao lado. Aí, aparece o filho dele sendo filha… Ele passou um período meio tenso, mas está mais relaxado com a ideia. Não deixou de ser carinhoso comigo em nenhum momento. Minha mãe tão-pouco. Ela me passou um vestido que ela não usava mais.”
Laerte já disse várias vezes publicamente que a sua vida sexual foi iniciada com homens (com muita turbulência, dor e conflito interior), tendo mais tarde passado por três casamentos heterossexuais, com experiências homossexuais furtivas. Saiu do armário da sexualidade no final dos anos 1990, e do armário de género mais recentemente. Quando olha à sua volta, percebe que a sua situação é “diferente das outras meninas”. Falando francamente, diz à Revista 2 que se sente “quase num recorte” diferente. “Primeiro porque todas que eu conheço têm uma história de infância para contar. Todas dizem: ‘Eu tinha cinco anos e roubava um vestido da minha irmã e ia atrás.’ Nunca fiz isso com tanta clareza. Tinha curiosidade e desejos de frequentar a feminilidade, mas não era uma coisa clara.” Outra das diferenças com as outras meninas, afirma Laerte, é ter sido aceite com muita rapidez. “Não só pela minha família, pelo meu entorno, meus colegas, meus empregadores, pelo meu público. Eu fico sentindo, por que é que eu não fiz isso antes? Quanto tempo eu perdi nisso? [risos] O que é um pensamento bobo porque a gente não perde tempo. Este é o meu tempo.”
Quando estava no palco da Festa Literária Internacional de Paraty, sessão a que assistimos em 2012, Laerte ainda parecia estar à procura de si própria. Aquilo que na altura parecia estudado e cópia de um modelo feminino — a maneira exagerada de cruzar a perna, o mexer nos cabelos, o pegar num leque — é-lhe agora perfeitamente natural. Embora saiba que jamais vai ser vista ou confundida integralmente com uma mulher. Mas essa também não é a ideia, a ideia é quebrar padrões. Livrou-se do seu guarda-roupa masculino e, embora as suas rotinas se tenham alterado, quando está em casa, não se maquilha. “É muito cansativo. Para ficar em casa, beleza. Sou uma senhora que está em sua casa. Estou-me reconhecendo cada vez mais dentro dessa pessoa que estou me virando. Para mim, é uma coisa tranquila, o que é que você é? Você é uma mulher? Se me perguntarem, eu não tenho problema nenhum e respondo: sim sou. Sei que tenho genitália masculina, que vivi não sei quantas décadas como homem, mas eu sou uma mulher, uma mulher trans [transgénero]. Podem dizer-me: ‘Ah! mas você tem voz de homem.’ E eu respondo: ‘Foda-se, muita mulher tem voz de homem’” [risos].
Passarinho fora da gaiola
No entanto, esse confronto não deixava Laerte indiferente. “Esse tipo de objecção era sério para mim quando a gente se viu lá em 2012, porque eu me objectava. Me olhava e pensava: ‘O que é que eu sou? Sou um monstro?’ Acho que toda a trans [transgénero ou transexual] vive um processo — mesmo as que começam na infância, todos os que vêm de mulher para homem e de homem para mulher — passam por um processo de auto-entendimento, de auto-aceitação e assunção. Esse processo é lento e gradual, embora muitas vezes as pessoas sejam levadas a uma dinâmica que acelera. Isso é uma pena mesmo, a agressividade em torno da vida dessa pessoa faz com que ela ou bloqueie ou acelere determinadas dinâmicas que podiam se dar com muito mais proveito, muito mais gozo.”
Os confrontos podem ser diários. Há dois anos, num restaurante, Laerte usou a casa de banho feminina. À saída, disseram-lhe que da próxima vez teria de usar a casa de banho dos homens porque uma das senhoras que estava com a filha na casa de banho tinha reclamado. A polémica levou a que semanas depois um deputado da bancada evangélica — aquele que ficou conhecido por querer criar um dia de “orgulho hetero” — apresentasse uma proposta de lei para criar “banheiros unissex” destinados à comunidade LGBT porque achava que os gays no Brasil “são muito folgados” e não queria que a mãe dele entrasse num “banheiro e encontrasse um homem vestido de mulher”. Claro que isso fez Laerte ripostar. “A criação de um terceiro banheiro é a consagração da segregação. A ideia é banheiros unitários é o que defendo, que nem o que tem aqui na LX Factory. Existem dois banheiros mas ninguém sabe qual é qual”, defende Laerte entre risos, relembrando o episódio que momentos antes aconteceu numa das casas de banho da LX Factory, em Lisboa, onde se brinca com a sinalética e só a existência de um urinol lhe permitiu diferenciar a casa de banho dos homens da das mulheres.
Com três amigas — Letícia Lanz, Márcia Rocha e Maite Schneider —, Laerte criou uma ONG, a Associação Brasileira dos Transgéner@s (ABRAT). Embora não tenham muita prática destas coisas, e duas moram em São Paulo e outras duas em Curitiba, quiseram com a ABRAT potencializar os seus esforços. Organizaram um encontro em 2012 e tentaram fazer outro no ano seguinte, mas não aconteceu. Estão atentas à legislação relativamente à questão LGBT, principalmente T, pois acham que este é o momento de colocar o foco na população transgénero. Notam que há um movimento em várias partes do mundo no sentido da compreensão da transgeneridade, assim como já houve o movimento de compreensão da homossexualidade. A Márcia — que é advogada — apareceu até com a ideia do transemprego. “É uma iniciativa para construir a possibilidade de aumentar a participação de pessoas trans no mercado de trabalho. Qualificá-las e não deixar só aberta a porta da prostituição ou do cabeleireiro porque acaba sendo essa a única saída”, explica Laerte.
Nestes últimos anos, Laerte tem sido um emblema contra o preconceito e a discriminação e é participante activa das manifestações de rua que têm ocorrido no Brasil. A militância está na sua vida desde os tempos da faculdade — estudou Música e Jornalismo na Escola de Comunicação e Artes da USP — e entrou para o Partido Comunista brasileiro em 1973. Enquanto percorria naquela tarde as ruas da LX Factory, Laerte reparou numa foice e num martelo, o símbolo usado para representar os partidos comunistas, desenhado numa das paredes. A conversa evoluiu para a comemoração dos 40 anos do 25 de Abril de 1974. “Tentei achar para trazer para exibir [na exposição do Festival Internacional de Banda Desenhada de Beja] uma cópia de um desenho que fiz. Tinha 23 anos em 1974, não me lembro se na época já estava no partido, mas vivíamos essa inquietação com a ditadura militar [1964-1985], quanto tempo é que isto aqui vai durar? E a notícia de Portugal foi um Carnaval para a gente, foi uma festa na alma.”
Lembra-se que o fez para o jornal mural A Ponte que publicavam na universidade. “Era um desenho de uns fantasmas de Hitler e Mussolini olhando tristes para uma gaiola cuja porta tinha-se rebentado e o passarinho já tinha voado. Havia outras gaiolas em representação, uma metáfora dos países sobre o jugo fascista. Era uma visão ingénua, mas fiquei com muita vontade de trazer o desenho, mas não consegui encontrar. Esse material todo, boa parte se perdeu ou foi destruída. Os meus amigos foram presos e torturados em 1975. Alguns morreram. Muitos parentes, amigos das pessoas que estavam presas pegaram tudo que conseguiram encontrar e pegaram fogo ou jogaram fora para não incriminar, para não piorar as coisas. Acredito que esse desenho pode ter ido embora nessa época. Mas foi muito importante, o 25 de Abril foi meia revolução para a gente.”
Laerte recorda também que naquela época havia censura, mas que no seu caso individual jamais foi censurada durante a ditadura. Começou a sua vida profissional em 1973 — não publicava nos grandes jornais, só o faz mais recentemente depois dos anos 1980 —, publicava em jornais sindicais que não eram alvo da ditadura, e na Gazeta Mercantil, que era um jornal económico. “Eu também não conseguia publicar nos órgãos da oposição, no Pasquim publiquei alguma coisa, mas não chegou a ser censurado nada.”
A verdade é que Laerte só foi censurada quando acabou a ditadura por causa de uma proposta de charge que fez. “Era um cartoon editorial que criticava a chamada ‘Nova República’ [1985] que seria o Governo de Tancredo Neves se ele estivesse vivo e acabou sendo de José Sarney — o jornal estava aliado com o Governo e se recusaram a publicar. Foi até um certo alívio para mim, finalmente tinha alguma coisa para contar: fui censurado. Mas o facto é que eu não o fui durante a ditadura e eu trabalhei muito nessa altura. Sempre fui muito cagona, sempre fui muito nervosa e já mandava os meus trabalhos, para onde quer que fosse, calibrados para o que achava que ia sair. Não tinha uma audácia permanente”, analisa Laerte a posteriori.
Conta que em 1968, quando “a censura pegou pesado” no Brasil, os grandes jornais sofreram uma transformação profunda. “Toda uma geração de colunistas e ‘chargistas’ políticos ficou calada, mudou de país, saiu. Para jovens como eu, que estavam começando a se profissionalizar, existia esse espaço de jornalismo de ‘género’ — o desportivo ou o económico. Por conta do chamado ‘milagre económico’, muitos jornais começaram a publicar matérias sobre economia, bolsas e humor… Fui construindo a minha linguagem de humor nessa época. Em torno da ideia de produzir um discurso cómico e gráfico seguindo o modelo dos meus mestres, que eram Ziraldo e Fortuna, do Pasquim, e ainda Henfil, Jaguar e Zélio.”
Voltar a desenhar
Quando o seu filho Diogo morreu, Laerte quis deixar de fazer o que fazia. “A minha primeira ideia foi dizer: ‘Eu não vou fazer mais o que faço. Não tem sentido.’ Mas, depois de um tempo, eu vi um sentido, que talvez esteja na diferença que há entre o humor e o cómico. Pode ser que eu também não tivesse num ambiente emocional interno para produzir piadas”, explica. A diferença, diz, está em que a comicidade inclui o humorismo mas não o representa totalmente, só se realiza quando consegue a risada. Por sua vez, o humorismo é uma linguagem que envolve desde a ironia até sarcasmos de todo o tipo e é um recurso, um ambiente intelectual, onde se podem produzir peças que não buscam a risada.
E foi assim que conseguiu voltar a desenhar e a fazer quadrinhos e tiras. Tentou continuar a desenhar a série de Os Gatos, Bigodes ao Léu (ed. Devir), sobre uma família de gatos inspirada na sua própria família, mas não conseguiu. Manteve a personagem do Hugo/Muriel e também a da andorinha Lola, que não incomoda porque, “enquanto formulação de carácter e de personalidade, ela é aberta, como se fosse mesmo uma andorinha que voa”. E afirma que elaborou uma saída que não era uma coisa exactamente nova. “Eu já vinha experimentando nessa direcção, fazia um ano ou dois já estava me cansando do modo como trabalhava. Então a morte do Diogo foi um determinante dramático, trágico, que derrubou uma série de bloqueios, fez cair uma série de véus também, agora para a frente nisso. E achei satisfatório.”
Quando lhe pedimos para descrever a sua BD actual, exclama “nossa!”, mas pouco depois responde. “Procuro fazer as minhas histórias. Sei que as minhas histórias têm um componente cómico muito forte, satírico, isso faz parte da minha formação, da minha história. Mas também me é permitido frequentar e passear com a minha narrativa a poesia, o surrealismo, a filosofia barata, todo o tipo de coisa. Não estou apenas criando piadas, então não me apresento mais como humorista.” Escreveu, por exemplo, roteiros para os primeiros tempos da popular sitcom humorística brasileira, Sai de Baixo. Recebia o esqueleto e depois tinha de colocar as piadas. “Mas foi muito cansativo, você tem de obter riso, riso, riso, e também teve seu tempo.”
Em 2012, quando o caderno Equílibrio da Folha de S. Paulo, onde se publicava o Blog da Muriel, acabou, Laerte ainda pensou manter a tira só na Web, mas não teve disciplina para isso. Mas agora vai tentar manter a história da Muriel porque lhe interessa e gosta dela. “Embora às vezes a personagem fique um pouco dura por causa da militância, por causa do activismo. Eu muitas vezes escorrego”, diz vendo isso como um empecilho. “É um problema porque quebra a graça. É preciso leveza, eu pelo menos sinto falta disso. É preciso essa coisa que surpreende a própria autora. Às vezes, é assim que eu sinto que acertei: vou fazendo e percebo que eu própria estou surpresa. Que óptimo! Que coisa incrível que essa pessoa fez aqui! É legal a história ter uma vida”, explica.
A verdade é que aos 63 anos Laerte está a experimentar muita coisa. Quando tinha 20 anos, estava “num caminho de experimentalismo muito grande”. Fazia teatro, gravura, pintura. Quando começou a vida profissional, necessariamente teve de “afunilar esse leque de procedimentos”. Mas sentiu que afunilou muito. “Estou há 40 anos dentro desse funil, estou abrindo agora. Foi uma época muito grande da minha vida em que o ferro foi malhado até à exaustão. Peng peng peng! O profissionalismo exige isso e a gente acaba se submetendo, mas é chato, é ruim. E tenho vivido esse dilema, como me libertar sem perder também o que eu já consegui, conquistei e que de certa forma garante o meu aluguel, garante o pão de cada dia.”
No Brasil, em 2013, saiu o livro Storynhas, da cantora e compositora Rita Lee, baseado nas histórias da sua conta no Twitter. Editado pela Companhia das Letras, trazia ilustrações de Laerte. Mais recentemente, foi lançado Vizinhos, um álbum que faz parte do Projeto Mil, que convida artistas para escreverem histórias sem diálogos, publicada pela Editora Narval Comics. A história passa-se num pacato bairro de São Paulo e um morador e um arrumador de carros entram em conflito. A colecção é coordenada pelo seu filho, o também autor de BD Rafael Coutinho, que é co-autor com o escritor Daniel Galera do livro Cachalote (ed. Companhia das Letras). “Rafael tem um desenho bem original. Quando ele começou a desenhar, eu fiquei pensando, de alguma forma preocupada, ‘será que ele vai de alguma forma fazer um trabalho parecido?’ Isso me deixava um pouco preocupada. Mas não, é muito original o desenho dele, é incrível, é muito bom. Rafael desenha maravilhosamente”, diz com visível orgulho.
A determinada altura, a conversa é interrompida pela chegada do fotógrafo. Traz dois bancos para ajudar na sessão fotográfica no seu estúdio na Lx Factory. Um deles com ar bastante enferrujado… “Não tem um prego aí, não?”, pergunta Laerte. “É que eu já perdi várias meias… [risos].”