Kerry apela à unidade do Iraque, mas os curdos já dão o país como “desfeito”
Rebeldes do ISIS reclamaram o controlo da maior refinaria do Iraque, em Baiji, a cerca de 200 quilómetros de Bagdad. ONU fala em mil mortos em duas semanas.
Em mais uma tentativa para impedir o colapso do Iraque, o secretário de Estado norte-americano, John Kerry, reuniu-se com os dirigentes curdos do Norte do Iraque, para discutir a crise política e de segurança: o objectivo do diplomata era convencer os seus interlocutores a “colaborar” e “contribuir” para a integridade territorial e a estabilidade governativa em Bagdad, em vez de enveredar pela via secessionista.
O Governo de Bagdad há muito que perdeu a sua autoridade: a saída do primeiro-ministro, Nouri al-Maliki, pelo seu próprio pé ou empurrado pela comunidade internacional, já só é uma questão de tempo. Os Estados Unidos sabem que é vital assegurar o acordo dos curdos para a constituição de um novo “executivo multissectário. “Se eles decidirem retirar-se do processo político em Bagdad, irão acelerar-se rapidamente todas as tendências negativas”, estimou um responsável do Departamento de Estado, citado sob anonimato pela Reuters.
A Administração norte-americana não esconde que a sua estratégia para resolver a crise política passa pela substituição do executivo liderado pelo xiita Maliki por um novo governo “mais abrangente” e representativo das diversas facções étnicas e religiosas iraquianas. Em contactos com o primeiro-ministro em Bagdad, Kerry recebeu garantias da indicação de um novo elenco governativo antes do fim do mês. Mas também ficou com a certeza de que a coligação de Maliki no Parlamento não está disposta a abrir mão da sua prerrogativa de indicar o nome do primeiro-ministro.
Perante o caos instalado no Norte do Iraque e nas regiões de fronteira com a Síria e a Jordânia, os combatentes curdos peshmerga assumiram o controlo da importante cidade de Kirkuk, centro petrolífero e capital histórica para os curdos, mas que fica fora da região semiautónoma sob a sua gestão. “Estamos confrontados com uma nova realidade”, avisou Massoud Barzani, o líder curdo que chefia o governo secular do Curdistão, ao receber Kerry em Irbil para conversações “urgentes”.
Numa entrevista à CNN, Barzani foi muito claro na avaliação da situação no país. “O Iraque está desfeito, o Exército, a polícia, o Governo, que obviamente perdeu o controlo da situação. Não fomos nós que causámos o colapso do Iraque, nem podemos ficar reféns desta incerteza e instabilidade. Chegou o momento de o povo curdo [cerca de 6 milhões de pessoas] determinar o seu futuro. É essa a decisão que nos comprometemos a cumprir”, sublinhou, deixando no ar a hipótese de convocar um referendo para a independência.
A missão do chefe da diplomacia americana em Irbil era, precisamente, travar essa iniciativa e reafirmar a importância dos curdos (e do Curdistão) para o sucesso da transição de poder em Bagdad e a integridade do Estado iraquiano. “Bem sei que este é um momento grave no Iraque”, reconheceu John Kerry, “mas o desafio passa pelo processo de formação de um governo [central] que possa corresponder às aspirações de todos os iraquianos.”
Os rebeldes do ISIS, enquanto isso, reclamaram o controlo da maior refinaria do Iraque, em Baiji, a cerca de 200 quilómetros da capital. Depois de dias de combates com os islamistas – apoiados pelas populações locais sunitas, nomeadamente da tribo dominante al-Kaisi – o Exército nacional desmentiu informações que apontavam para a negociação do cessar-fogo e rendição dos soldados iraquianos. “A refinaria permanece sob o controlo das heróicas forças de segurança nacionais. As notícias que estão a ser veiculadas não passam de boatos maliciosos”, considerou o coronel Ali al-Quraishi, encarregado da protecção da refinaria, que garante um terço da produção do Iraque.
A insurreição do ISIS estendeu-se ontem à zona sul da capital, para o território (maioritariamente xiita) que durante a guerra do Iraque foi baptizado pelas tropas norte-americanas como o “triângulo da morte”. O projecto Iraq Body Count, que documentou as mortes durante esse período, apresentou a sua contabilidade do número de vítimas da investida iraquiana do ISIS: na sua lista já constam mais de três mil pessoas.