Um dos grupos históricos do meio teatral português, A Barraca, repôs esta semana uma peça, também ela histórica, do seu repertório: Fernão Mentes? Já lá vamos ao tempo e ao lugar, mas antes convém dizer que esta reposição vem bem a propósito: porque se celebram os 800 anos da Língua Portuguesa (e como Fernão Mendes Pinto navegou nela!) e porque se realizam os exames nacionais, onde idioma e história se misturam nas mesas das provas.
Seja como for, quando A Barraca estreou tal peça, versão de Helder Costa sobre a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto (e isso foi no FITEI, a 18 de Novembro de 1981), andava o grupo já noutras guerras (sina eterna do teatro) para preservar as suas instalações (nessa altura ainda na Rua Alexandre Herculano, em Lisboa, com ameaça de despejo pelo proprietário, o Banco Nacional Ultramarino, para posterior demolição do prédio) e pela sua subsistência. Passaram-se nada menos do que 33 anos, a idade de Cristo, e A Barraca sobreviveu. Com as dificuldades que se conhecem, de que outros também se queixam, mas com a força suficiente para manter um cartaz vivo nas instalações do antigo cinema Cinearte, em Santos — isto embora a reposição de Fernão Mentes? se dê noutra sala, a do Teatro da Trindade (ao Chiado), onde ainda pode ser vista de quarta a sábado (21h30) ou no domingo (18h), mas só até dia 29.
Curiosamente, Fernão Mentes? esteve na origem de dois discos fundamentais na música portuguesa: Por Este Rio Acima, de Fausto Bordalo Dias (editado em 1982 e primeiro tomo de uma fantástica trilogia que seria completada com Crónicas da Terra Ardente, 1994; e Em Busca das Montanhas Azuis, 2011), e Como Se Fora Seu Filho, de José Afonso (1983). Isto porque ambos compuseram canções para a peça, cinco cada um, ressaltando de entre as escritas por Fausto A voar por cima das águas ou Quando às vezes ponho diante dos olhos, e sendo as de José Afonso Utopia, A nau de António Faria, Canção da paciência, Canção do medo e Verdade e mentira, todas elas incluídas no disco atrás referido e indicando essa origem.
Folheando o programa de há 33 anos, diz-se logo de início, num texto escrito pelo autor e encenador, Helder Costa, que “Fernão Mendes Pinto foi um dos milhares de portugueses que arrostou contra ventos e marés seguindo a rota que o levaria ao El Dorado. Felizmente para todos nós, acabou por ser o Charlot da Quimera de Oiro. E deixou disso testemunho farto e eloquente. As peripécias por que passou esse ‘pobre’ português têm pouco de grandiloquente e de guerreiro ou santo exemplar. Mas têm tudo de verdade, têm tudo da vida. Os medos, as riquezas súbitas, a astúcia, a miséria, a desgraça, a audácia, o ‘safar a pele’, a inteligência, a solidariedade, e, acima de tudo, um final de vida tranquilo que permite olhar para trás sem remorsos nem arrependimentos e transforma Fernão Mendes Pinto no arquétipo do homem do povo da grande gesta dos Descobrimentos.” Um “espectáculo exaustivo e vivo sobre as civilizações e culturas do século XVI, eis o que se quis fazer”, concluía Helder Costa.
Na página seguinte, Fausto (que já abordara musicalmente a Peregrinação num disco anterior, História de Viageiros, de 1979) falava da música, dizendo que “a peça e as canções procuram (…) dimensionar o homem como elemento transformador do mundo e da vida e, ao mesmo tempo, transformado pelo movimento da história; apresentá-lo na sua mesquinhez e na sua grandiosidade humana”. A terminar, falava da dimensão conferida por Fernão Mendes Pinto à odisseia dos descobrimentos: “É a exacta coragem da percepção do medo, sendo verdade o inverso. É também a ausência de sentimentos rácicos ou de subestimação e desprezo pelas outras culturas e civilizações. Servindo-se disto, a peça é para mim uma terapêutica segura para quem ainda sofra de psicose ou do complexo colonial.” No final, A Barraca lembrava que durante a vida de Fernão Mendes Pinto ocorreram factos de relevo para a história (e não só a nossa). Como o nascimento de Camões ou a fundação do Rio de Janeiro. Bom pretexto para conferir, hoje, se ele “mente” ou não.