Especialistas não se entendem sobre critérios de correcção do exame de Português
Os especialistas não se entendem. O Instituto de Avaliação Educacional assegura que não há qualquer erro, a representante da Associação Portuguesa de Linguistas diz que ele existe e já há, também, quem diga que a questão admite duas respostas, pelo que incluí-la no exame é "um imenso disparate".
Para os alunos, em causa estão cinco pontos em 200 ou meio valor em 20.
A questão refere-se à última frase do último parágrafo do texto de Lídia Jorge sobre Eça de Queirós: “É por isso que, para além do culto que a obra de Eça legitimamente merece, por mérito próprio e grandeza genuína, se deve reconhecer, para sermos justos, que muita da admiração totalitária que Eça desencadeia nasce porventura duma espécie de preguiça e lentidão em entender, ainda nos nossos dias, a linguagem diferente daqueles que lhe sucederam. O que não parece vir a propósito, embora venha. Como um dia veremos." No exame é pedido aos alunos que classifiquem o acto ilocutório presente em “Como um dia veremos”.
Nos critérios de correcção, publicados na página da internet do IAVE, os alunos puderam ler, na própria quarta-feira em que fizeram o exame, que a resposta correcta seria “acto ilocutório compromissivo”. Ontem, quinta-feira, a Associação de Professores de Português (APP) denunciou aquilo que considerou ser um erro dos critérios de correcção, afirmando que a resposta certa era “acto ilocutório assertivo”. Ao cair da noite, no entanto, em resposta ao PÚBLICO o IAVE foi taxativo, afirmando que não existe qualquer erro, quer na prova, quer nos critérios.
Sónia Rodrigues, que para além de representante da APL no IAVE é também professora da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e docente do ensino secundário, considera que “a única explicação para o erro e para o facto de ele não ter sido corrigido após os primeiros alertas é não haver nenhum linguista, e nomeadamente na área da Pragmática, na comissão de avaliação ao exame do IAVE”. “É muito difícil de entender o que se está a passar”, comentou, referindo-se à actuação do instituto.
De acordo com a nova terminologia linguística, os actos ilocutórios dizem respeito às acções que se realizam através do simples facto de se dizer algo, numa determinada situação de comunicação, sob certas condições e com determinadas intenções, explicam as gramáticas.
“De uma maneira simples, podemos dizer que um acto ilocutório compromissivo tem como característica o facto de quem fala se comprometer a si próprio a fazer alguma coisa – pode ser uma promessa, um juramento, um compromisso”, explica Sónia Rodrigues.
Na sua opinião, “é objectivo que não é esse o caso da afirmação de Lídia Jorge, que não se compromete seja ao que for”. “Podemos considerar que se trata de uma previsão, da abertura de uma possibilidade e é sem dúvida um acto ilocutório assertivo”, defende. Isto, explica, na medida em que “o locutor faz uma afirmação que exprime uma convicção e que representa um valor de verdade e de crença”. “É como se alguém dissesse: “Um dia os portugueses vão acordar” – naturalmente não está a comprometer-se a fazer com que isso aconteça, mas a manifestar a crença de que isso se vai verificar”, exemplificou.
"Um imenso disparate"
Há, no entanto, quem faça outra leitura e não necessariamente coincidente com a do IAVE. Adriano Duarte Rodrigues, especialista em Teoria da Comunicação e Pragmática e professor de mestrado da Universidade Nova de Lisboa, onde até há ano e meio coordenava o curso de doutoramento em Linguística, afirma que aquele acto ilocutório tanto pode ser classificado como assertivo como compromissivo. Do que não tem dúvidas é que “é um imenso disparate incluir tal questão num exame nacional do secundário”.
Contactado pelo PÚBLICO, frisou que a questão é da área da hermenêutica e que a cláusula temporal “um dia” (em “Como um dia veremos”) tanto pode ser vista como uma referência ao futuro como poder ser entendida como "uma enálage temporal, uma figura de retórica que consiste na alteração da referência ao tempo"". " “Um dia” será, então, futuro em relação à época de Eça de Queirós, mas passado em relação ao momento em que Lídia Jorge escreveu”, explicou.
Deu um exemplo: “Eu posso escrever: “Amanhã dou-te uma prenda” e este é um acto ilocutório compromissivo. Mas também posso escrever: “Hoje ainda não há caminhos-de-ferro. Um dia os comboios cruzarão este país” – e neste caso, trata-se de um acto ilocutório assertivo: estou a escrever algo que tem valor de verdade, que já aconteceu e uso o futuro como figura de retórica, embora "um dia" seja já passado em relação ao momento em que escrevo”.
Admitindo que a questão "pode deixar um adulto perplexo", Adriano Duarte Rodrigues insistiu que "colocá-la num exame nacional do secundário, para mais sem pedido de justificação que permitisse verificar a interpretação do aluno, é um imenso disparate". Defende que, “cometido esse erro, a solução é considerar correctas as respostas “compromissivo” e “assertivo””, dando o meio valor em 20 a todos os alunos que tenham dado uma delas.
Mas também neste aspecto as opiniões variam. Nesta quarta-feira, a presidente da Associação de Professores de Português , Edviges Ferreira, considerou que, “na pior das hipóteses, o IAVE terá de considerar certas ambas as respostas", devido às expectativas criadas pelos critérios de correcção. Sónia Rodrigues defendeu esta sexta que o IAVE “deve agir rapidamente, rectificando os critérios e notificando os professores classificadores para que apenas seja considerada correcta a resposta” que na sua opinião “efectivamente o é: acto ilocutório assertivo”.
Na noite de quinta-feira o PÚBLICO procurou saber qual a posição do Ministério da Educação e Ciência (MEC) sobre este caso. Na tarde desta sexta-feira o MEC respondeu, através do gabinete de imprensa, informando que O IAVE, uma "entidade independente com competência nesta matéria", "não confirmou a existência do erro em causa e está a preparar informações de natureza técnica sobre o assunto".