Primeira observação da estrutura da água líquida a... 46 graus negativos
As invulgares propriedades físicas da água surgem em todo seu esplendor quando ela é arrefecida de forma extrema sem congelar. Foi agora possível começar a estudá-las a temperaturas mais baixas do que nunca.
Sem ir mais longe, a forma sólida da água, o gelo, é mais leve do que a sua forma líquida. É por isso que o gelo flutua na água, formando uma camada protectora, durante o Inverno, que permite a sobrevivência das espécies aquáticas. Por outro lado, a água consegue absorver muito bem o calor, o que lhe permite transportá-lo a grandes distâncias nas correntes marinhas – o que tem um impacto fulcral no clima do nosso planeta.
Quando é extremamente pura, a água pode ser “super-arrefecida” – ou seja, pode ser levada a permanecer no estado líquido mesmo a temperaturas muito negativas. Nessas condições, as suas bizarras propriedades, muitas das quais os especialistas continuam a tentar explicar, acentuam-se ainda mais.
Só que até aqui, a observação da água no estado super-arrefecido não era possível a temperaturas inferiores aos 41 graus Celsius negativos, porque a sua quase instantânea congelação proibia ver o que se passava.
Agora, uma equipa de cientistas nos EUA conseguiu, pela primeira vez, graças a uma nova técnica de arrefecimento rápido e a um laser ultra-rápido de raios X instalado na Universidade de Stanford, observar a estrutura microscópica da água líquida até aos 46 graus Celsius negativos. Os seus resultados foram publicados na revista Nature com data de quinta-feira.
“A água não é apenas essencial para a vida tal como a conhecemos, como tem também propriedades muito estranhas comparada com a maioria dos outros líquidos”, diz em comunicado Anders Nilsson, do Laboratório Nacional do Acelerador Linear SLAC do Departamento da Energia norte-americano e da Universidade de Stanford, o líder da equipa.
De facto, estes cientistas vislumbraram aquilo a que se tem dado o nome de “terra de ninguém” da água e que corresponde à zona de temperaturas entre os 41 e os 113 graus Celsius negativos. Existem teorias e modelos, ainda controversos, sobre o comportamento da água nessa zona, explica a Nature. E uma delas prevê que a estrutura da água super-líquida se altere por volta dos 45 graus Celsius negativos. Até aqui, porém, tratava-se sobretudo de especulações; a partir de agora, torna-se possível “desempatar” essas teorias.
O que Nilsson e a sua equipa fizeram foi desenvolver uma técnica que permite “mergulhar” nesse mundo desconhecido da água. Para isso, começaram por produzir um fluxo contínuo de microscópicas gotas de água numa camara de vácuo.
À medida que as gotículas se aproximavam do feixe laser, iam-se evaporando, arrefecendo rapidamente o resto da água líquida tal como a evaporação do suor arrefece a nossa pele, explica o já referido comunicado.
A seguir, fazendo variar a distância que as gotículas percorriam até ao feixe laser, os cientistas conseguiram controlar a temperatura dessas gotículas no preciso instante em que se cruzavam com os raios X emitidos pelo laser. Tal e qual uma máquina fotográfica ultra-rápida, o laser capturou então sequências de imagens dos pormenores da estrutura molecular da água super-arrefecida a diferentes temperaturas.
“Obtivemos provas experimentais da existência de um estado (…) de água líquida [até aos 46 graus negativos] na ‘terra de ninguém’ previamente quase inexplorada”, escrevem os autores. “Observámos um aumento contínuo e cada vez mais acelerado na ordenação estrutural da água super-arrefecida até perto dos 44 graus negativos.”
A partir dessa temperatura, prosseguem, “o número de gotículas que contêm cristais de gelo aumenta rapidamente. Porém, mesmo a essa temperatura, algumas gotículas permanecem no estado líquido durante cerca de um milissegundo.” Tempo mais do que suficiente para que os impulsos de raios X, muitíssimo mais breves do que isso – apenas 50 milésimos de milionésimo de milionésimo de segundo – ainda conseguissem “fotografar” a cena.
Os cientistas esperam descer a temperaturas cada vez mais gélidas, para a zona onde a água se torna um sólido não cristalino (como o vidro). “O nosso sonho é analisar estas dinâmicas até ao limite do possível”, diz Nilsson. “Um dia, o facto de percebermos o que se passa na terra de ninguém vai ajudar-nos a adquirir uma compreensão profunda da água em todas as condições.”