Quatro diabos a quatro

Uma experiência teatral rara: Demónios, de Lars Norén, na encenação de Nuno Cardoso.

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Um casal num ringue de boxe: Frank (Pedro Frias) e Katarina (Micaela Cardoso) PAULO PACHECO

Véspera do enterro da mãe de Frank (Pedro Frias). O apartamento imaculado à volta do qual se sentam os espectadores deste Demónios, e onde Katarina (Micaela Cardoso), de camisa de homem e combinação, aguarda o marido, rapidamente se revela uma arena de combate conjugal poluída pelo ressentimento. Farta de folhear uma revista com instruções de consumo, a actriz decide virar o cinzeiro, entornar as cinzas e as pontas de cigarro, virar o edredão e estilhaçar um copo no chão, para chamar a atenção de Frank (que chegara a casa trazendo consigo a urna com o que resta da mãe, cremada). Nuno Cardoso e os seus actores optaram por deixar à vista de todos o interesse da personagem em levar a outra aos arames, e as tácticas usadas por ambos para testarem o amor do parceiro. O relacionamento de Katarina e de Frank vive de golpes de teatro. Esta coincidência entre jogo teatral e jogo afectivo, que quase não se distinguem, que se reflectem e iluminam mutuamente, constitui o código do espectáculo e a chave para uma experiência teatral rara.

A dramaturgia faz entrar em cena um casal de vizinhos, Jenna (Joana Carvalho) e Tomas (João Melo), que serão usados como arma de arremesso e brinquedo de roer. Mais do que um ringue de boxe, este apartamento é uma jaula para crias famintas. São quatro feras em cena e uma colecção de agravos que as personagens fazem umas às outras. Insultos espirituosos, denúncia de fraquezas alheias, confissão de desejos secretos, os demónios de cada um desfilam perante o olhar do público. Os demónios interiores, claro, mas algo mais: os demónios feitos carne e osso, encarnados por estes actores. Dizer que as personagens são como diabos evoca mais o teatro medieval do que a dramaturgia escandinava, mas a interpretação diabólica deste elenco é precisamente uma síntese da virtude latina, mais ou menos histriónica, dos actores, e da introspecção explosiva atribuída aos nórdicos. Se todas as montagens de peças estrangeiras fossem assim, Portugal seria um país melhor.

Ecos de outras peças, desde Quem tem medo de Virginia Woolf?, de Edward Albee, a Ocidente, de Rémi de Vos, soam nesta dramaturgia como uma lembrança de tempos passados. É um texto realista, tão realista que – no tempo dos reality shows – parece que assistimos a um serão em tempo real. O espectáculo, porém, revela-se uma missa negra, em que, no lugar da comunhão do corpo e do sangue de Cristo, a personagem masculina derrama as cinzas da mãe sobre a esposa, depois de várias liturgias do ódio, alimentado a doses generosas de gin e whiskey. O fascínio dos vizinhos, sacristãos à força, torna-se horror.

A peça caminha para um clímax de teatralidade que vem sendo cuidadosamente preparado pelos actores, em andamentos precisos, encenados com discrição, de patamar de agressão em patamar de agressão, até ao choque frontal. Quando Frank despeja a urna sobre Katarina, o que acontece é um gesto teatral e um facto fictício, mas ambos mais reais do que o real. O acto sucede aos actores como se eles fossem as personagens, e aos espectadores como se eles fossem os actores. À medida que o espectáculo crescer, este curto-circuito electrizará as plateias.

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