Índia: o corpo delas é deles
O último caso de duas adolescentes enforcadas e depois violadas colocou de novo o tema da violência contra as mulheres na Índia na agenda. Organizações falam de um fenómeno epidémico. Como se explica? Especialistas comentam.
Um dos últimos episódios mais chocantes, em finais de Maio, foi o de duas adolescentes de 14 e 16 anos enforcadas numa árvore na aldeia de Katra Shahadatgani, no mais populoso estado indiano, Uttar Pradesh, depois de terem sido violadas em grupo – elas tinham ido à casa de banho a céu aberto, pois não tinham instalações sanitárias em casa, problema que afecta milhões de indianos. Na altura, a família acusou a polícia de ter ignorado o caso por elas serem de uma casta mais baixa.
Mas ainda esta semana aconteceram outros episódios, todos no estado de Uttar Pradesh (no norte), o mais populoso da Índia: uma mulher que ia buscar o marido à polícia acusou quatro homens de a terem violado em plena estação policial, incluindo o sub-inspector, alegando que tudo aconteceu por ela se recusar a pagar um suborno; uma mulher com mais de 40 anos foi encontrada enforcada numa árvore, depois de ter sido violada, segundo a família, escreve o Guardian; e a BBC reportava que também uma adolescente de 19 anos foi encontrada nas mesmas condições.
Por seu lado, na quarta-feira, Narendra Modi, o recém eleito primeiro-ministro, falou pela primeira vez do tema em público: o governo declarou “tolerância zero” em relação à violência contra as mulheres e prometeu um reforço do sistema de justiça criminal para tornar mais eficaz a aplicação da lei, além de ter um plano para construir casas de banho em cada unidade familiar até 2022, algo que poderá reforçar a segurança das mulheres já que muitas têm que fazer as necessidades na rua e por vergonha fazem-no à noite, sozinhas. Modi apelou ainda a que se acabasse com a politicização das violações. Isto porque Babulal Gaur, ministro do estado de Madhya Pradesh e do partido de Modi, o BJP, o partido nacionalista Hindu, fez declarações altamente criticadas dizendo que a violação “é um crime social que depende de homens e mulheres” e que “às vezes é certo, outras vezes é errado”.
Os casos de violência contra as mulheres na Índia têm sido constantemente reportados nos media desde então, ao ponto de algumas organizações falarem de um fenómeno epidémico. Podemos explicá-lo como?
Mais queixas
De acordo com o Guardian, as estatísticas mostram que em 2012 houve cerca de 244 mil queixas policiais de violência contra as mulheres, mais 6% do que no ano anterior. Um aumento, mas um aumento dos casos ou das queixas?
Ao PÚBLICO, Ranjana Kumari, activista do Centre for Social Research India, lembra que o número de casos reportados à polícia nem sequer “é tão alto quanto o problema das violações e outros crimes contra as mulheres na Índia”. Por email, explica: “A cultura do silêncio e de meter os crimes debaixo do tapete faz parte da norma há gerações”, afirma.
Ranjana Kumari entende que “é um facto social que os rapazes são vistos como um bem e as raparigas como uma obrigação para descartar”. Para a activista há uma falta de vontade política e das entidades prisionais em enviar as mensagens certas aos criminosos de que vão sofrer as consequências dos seus actos, deixando ainda a mensagem de que a falha do sistema judicial os encoraja a não mudarem os comportamentos. O “ofensivo baixo número de condenações” – “há dados que mostram que há apenas 27% condenações” das queixas feitas – é outra das razões que faz com que os violadores não tenham medo da lei e saiam em liberdade, acrescenta. “Durante gerações inteiras as mulheres foram tratadas como sendo subservientes aos homens. Nenhum homem sofria represálias por mal tratar uma mulher. A violação é vista e usada como um modo de oprimir, controlar e dominar uma mulher abusando dela fisicamente. Ou a mentalidade de tratar as mulheres como objecto e propriedade se transforma ou crimes como a violação não vão diminuir.”
Na quinta-feira, a Índia contestou um relatório submetido à Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas sobre violência contra as mulheres, onde se afirmava que neste país era sistemática e continuada, do nascimento à morte. Embora não o comentando directamente, Kumari afirma que as mulheres indianas sofrem sim violência fora e dentro de casa e que os casos em que é a família a fazê-lo devido a questões como o dote (dinheiro ou propriedade entregue à família do marido quando se casam) ou ter-se tido uma rapariga em vez de um rapaz são práticas tradicionais recorrentes.
Existem, de acordo com as Nações Unidas, 200 milhões de mulheres desaparecidas por feminicídio no mundo e 25 milhões estão na Índia. Ao telefone dos Estados Unidos, Evan Grae Davis, autor do documentário It’s a Girl! (sobre o feminicídio e a selecção sexual de bebés na Índia e na China), diz-nos que a prática na Índia era pior do que o que imaginava antes de começar a rodar o filme em 2010 e 2011.
Na altura, os números que usou sobre as disparidades entre homens e mulheres eram “conservadores”, segundo o próprio. Por exemplo, dizia que na Índia a taxa de mortalidade de meninas com entre 1 e 5 anos eram 40% mais altas do que a dos rapazes. Em 2012, as Nações Unidas publicaram um estudo onde se concluía que essa percentagem era de 75%, fazendo da Índia o pior país do mundo em termos de diferencial entre sexos.
“A minha conclusão é que (a violência) é produto de uma cultura de séculos em que os homens carregam o nome e a riqueza da família, enquanto uma mulher perde a sua família e o dote leva parte da riqueza da sua família. Há também muitos estigmas sociais: as percepções sobre o valor humano conforme as castas. E se uma mulher só tem filhas vai ser estigmatizada e olhada de lado.”
Abortar raparigas, negligenciá-las com má alimentação ou falta de assistência médica são práticas correntes, reporta no filme. Isso, considera, tem origem no mesmo sistema de segregação e desvalorização da mulher. Kumari, por exemplo, não tem dúvidas de que as violações e outros crimes contra mulheres continuam a existir porque os rapazes e os homens são educados a pensar que são superiores às mulheres e gozam de impunidade.
Depois de 80 horas de gravação com várias mulheres, Evan Davis acha hoje que o aumento do número de casos de violações reportados agora terá também a ver com a mudança da mentalidade das mulheres na Índia: “Com a globalização as mulheres estão mais em contacto com os movimentos feministas e temos uma geração mais nova a reportar esses casos, situações que não seriam tornadas públicas no passado – as pessoas estão mais disponíveis, com vontade de fazer justiça social”.
É justamente esta participação pública que Kalpana Wilson, académica do Gender Institute da London School of Economics, sublinha ao telefone de Londres. Fundadora da plataforma de solidariedade Freedom Without Fear, Kalpana Wilson lembra que é importante focarmo-nos no facto de ser “único no mundo tantos homens e mulheres virem para a rua protestar contra a questão das violações”, como aconteceu nos últimos anos na Índia. “É talvez por isso mesmo que estes casos apareceram em público.”
Género e casta
Não é possível entender episódios recentes como o das duas raparigas de 14 e 16 anos que foram violadas, continua, sem entender a opressão que existe em relação às castas - proibidas por lei desde meados do século passado, mas que na prática continuam a existir. “Aquelas raparigas eram de uma casta oprimida, e tem havido violência contra as mulheres e raparigas dessas castas, que têm pouco acesso à justiça, por exemplo. Neste caso vimos até a polícia a colaborar nessas violações, e isso é uma das coisas que desencadeou imensa raiva porque não é apenas uma questão de género, é género e casta juntos.”
Para a especialista, a violência contra as mulheres não é um problema específico da Índia. O que é diferente é que este é um tema que está agora na agenda social e dos media do país, os indianos estão a insurgir-se. Mesmo declarações como a do ministro citada anteriormente estão a ser questionadas. “A Índia tem um movimento feminista há décadas. No último ano e meio as violações tornaram-se um assunto de organização massiva e isso fez com que toda a gente ficasse consciente de que tem certos direitos. Normalmente, a vítima de uma violação fica com uma grande dose de vergonha e muitas famílias preferem não falar sobre o assunto. Isso também está a mudar: falámos com advogados que trabalham com vítimas e pode-se ver uma mudança, é encorajador.”
É, de resto, contra o perigo da tendência de nos centrarmos apenas nos casos mais horrendos que Ashwini Tambe, directora da revista académica americana Feminist Studies, chama a atenção. “O foco nas violações de grupo – em vez de os mais frequentes crimes de violação dentro do casamento, violência doméstica, violência emocional, e assassinato – arrisca-se a perpetuar os guiões sobre a honra e sobre as mulheres como propriedade sexual.”
A também professora de estudos feministas na Universidade de Maryland, e autora de um livro sobre prostituição na Índia, lembra um estudo do americano International Center for Research on Women, Men, Masculinity and Domestic Violence in India, com resultados que contrariam a ideia de que os perpetradores de crimes sexuais são homens com menores rendimentos: os homens com estatuto socioeconómico mais baixo mostraram os níveis mais baixos de violência sexual, tendência inversa aos que tinham estatuto mais elevado. Ou seja, os resultados “mostraram que a violência sexual - não a física – aumenta à medida que o estatuto laboral aumenta.”
Ranjana Kumari lembra que embora o governo tenha passado leis importantes é preciso garantir que elas sejam aplicadas, o que não tem acontecido. “O governo também precisa de fazer emendas ao Código Penal para diminuir o tempo dos julgamentos, acelerar os tribunais nos casos de agressão sexual e tornar mais dura a punição. É preciso também uma reforma séria da polícia e uma sensibilização. São ambos aspectos fazíveis e cruciais – não apenas para uma melhor implementação, mas também para assinalar a seriedade com que estes crimes são vistos.”
Há ainda outra questão que Ashwini Tambe levanta e que tem sido pouco debatida: na verdade, o empenho do governo em proteger as mulheres da violação pode provocar-lhes mais medo em relação aos espaços públicos. “Precisamos de campanhas e movimentos que se centrem em aumentar o acesso das mulheres aos espaços públicos. Também precisamos de nos lembrar que o objectivo é ter uma sociedade em que as mulheres podem reclamar para si, sem medos, o prazer e o desejo sexual.”