Um relvado à beira-mar mal plantado
Rendo homenagem a Michael Seufert, do CDS-PP, e posso imaginar o que terá sentido ao ver descambar o seu perseverante trabalho de bastidores no descalabro que se viu
Recapitulo o que fixei desse dia em que a Assembleia da República (AR) deu aos cidadãos mais um exemplo cabal de como é infrutífero pedir ("petição" vem de "pedir") o que deveria, em bom rigor, exigir-se... Respeito.
Com a imaginação sempre a postos – íntima "saída de emergência" –, foi já fazendo soar mentalmente um “Requiem pela democracia representativa” que entrei nas galerias para assistir ao debate sobre o AO e às votações dos três Projectos de Resolução suscitados pela petição que propunha a desvinculação de Portugal deste tratado. Com grande pesar, iria ver amplamente confirmados os fundamentos das reservas indignadas que exprimira, sem meias-palavras, na audição de peticionários. Mas como desejei não ter tido razão no "raspanete" antecipado...!
Recordei a última vez que lá estivera, presidia então Mota Amaral aos trabalhos, com a graça da pronúncia açoriana acrescentada ao charme dos estadistas em vias de extinção... Agora rente à parede do hemiciclo, em lugar de última fila, cabeça recostada atrás, olhar baço, iria ver-se um corropio à sua volta. Vários sacos de gatos em cada bancada. Declarações de voto, de sinal contrário ao voto expresso, anunciadas quais certificados de impotência resignada à subalternização do mandato popular e à paulatina castração da dignidade pessoal. Ordem assegurada pelos capatazes do coro laudatório que apenas visa "suportar" (em ambos os sentidos) o desgoverno em funções.
Por espécies em vias de extinção... Heloísa Apolónia não conseguiu perceber que nunca houve para o AO qualquer estudo de impacto ambiental, nem que a propaganda promotora da "heterografia" em tudo se equipara à apologia dos alimentos transgénicos, como sublinhei num artigo – "Novos modos de não ser" – que diligentemente, meses antes, lhe tinha feito chegar... Voltaria a recriar a "prima" de Raul Solnado: toda a evolução é positiva, a dinâmica não é estática, simplificar é democratizar, mas se há dúvidas há que duvidar, embora a dúvida não duvide da boa dinâmica simplificadora... Vá lá que foi do contra, porque é do contra, porque sim. Ou, neste caso, porque não.
Vi-me entrecortando as percepções tristes dessa manhã com uns devaneios. A minha Carta Aberta aos Deputados, expedida na antevéspera, submergira no pântano da conciência individual; as excepções confirmavam a regra. "Pim!"??? "Pim!"
O debate sobre o AO começou com Ribeiro e Castro a apresentar o Projecto de Resolução de que foi primeiro subscritor e do qual tinham sido enviadas, de véspera, à Presidente da AR, nada menos que três versões rectificativas. Ficou a proposta de Grupo de Trabalho a criar pelo Governo sem objectivo, sem prazo, sem motivos, ou seja, o "quase nada" transformado em "nada de nada". Visualizei uma corrida de lesmas num mapa, do Minho a Timor, sendo cada uma delas uma ideia inconsistente, infinitamente plástica, da massa amorfa dos nossos "representantes".
Só desta vez, Ribeiro e Castro absteve-se de dissertar sobre "quanza" ou "kwanza" ou "cuanza", contornou o arrazoado soporífero habitual. Foi sucinto, quase tanto como o projecto de resolução que viria a ser aprovado. Já que o "quase nada" se reduzira a "nada mesmo", "nada mesmo nada" havia a dizer. Até esta intervenção vestigial se arriscaria a pecar por excessiva...
Resumiu: se, por um lado, a "lusofonia" é linda, por outro lado nem a que temos na boca é língua nossa, se bem que assim-assim, e pelo contrário. Divaguei, como quem trauteia: "Três corpetes, um avental, sete fronhas e um lençol"... Não um, muitos aventaizinhos neste imenso rol de roupa suja, há que dizê-lo!
Tinha começado Ribeiro e Castro por citar uma frase recente de Adriano Moreira... Sabe-se agora como este foi ameaçado, enquanto Presidente da Academia das Ciências, pelo então Ministro da Cultura, Pinto Ribeiro, quando o AO estava a ganhar balanço para tomar de assalto as Escolas e a Administração Pública. Como ousava alguém pretender interpor-se no caminho dos que, por serviço e obediência, carregando a Língua Portuguesa inanimada sobre uma imensa bandeja, a levavam ao necessário sacrifício no altar da nova ordem mundial? Sim, há quem veja as Línguas como obstáculos a uma utópica união fraterna e universal dos povos. É assim que começam os totalitarismos, negando a natureza humana – e, com ela, direitos humanos! –, fazendo prevalecer os seus, só seus, valores tidos por mais altos.
Pinto Ribeiro, segundo Ministro da Cultura de Sócrates, citado pela agência Lusa ao anunciar um estudo sobre o valor económico do Português, enquanto comemorava o 10 de Junho de 2008 no Consulado Geral de Portugal em São Paulo, disse: “O entendimento entre todos os falantes da Língua Portuguesa e a sua divulgação constituem o instrumento indispensável na resolução de problemas de coesão social, desenvolvimento, democracia e segurança. Só assim poderemos participar, e a nossa participação é essencial na criação de um estado mundial de ordem baseada no direito e de progresso.” (sic). "Ordem e Progresso" é uma insígnia bem conhecida; quanto ao resto, só pode estarrecer os incautos. A Maçonaria cultiva o Esperanto, tentativa falhada de idioma-de-laboratório. E uns quantos, cá e lá, criaram o "acordês", artefacto que pretendiam viesse a ser um "lusofonês" delapidado, mas que acabou sendo apenas este "mixordês" confinado a um uso muito restrito (e quase sempre impositivo) em Portugal, Pátria-Mátria da Língua Portuguesa.
Regressando da associação de ideias para escutar o resto da mini-alocução de Ribeiro e Castro, imaginei um pêndulo oscilando entre, num extremo, o Estado soberano real, desejavelmente "de Direito" e democrático, de que aquela casa é suposto ser Órgão de Soberania e, no outro extremo, o tal Estado mundial imaginado pelas subterrâneas irmandades apátridas de traficantes de influências, passando por todos os pontos intermédios
Seguiram-se dois discursos intragáveis, ambos culminando numa citação literária de pasmar.
Rosa Arezes, olheirenta e pálida, representando o PSD, fez a demonstração prática de como alguém pode engasgar-se ao tentar articular a proclamação de um amor ambivalente de além-mar, desastradamente tomada de empréstimo. Findo o discurso repleto de erros gramaticais, a ex-professorazinha soluçou Olavo Bilac em atabalhoado sobressalto: “á-mo-te...”! (Quem diria!) A oratória da falsidade não é para quem quer, é para quem pode. Poesia com nó corrediço na garganta... Não se vende a Língua, não; vende-se só a alma de quem pensa alienar o que não é seu, a troco de um "assento para lamentar" púrpura, aveludado, fofo.
A outra citação da sessão plenária foi... antológica. Rematando o discurso em nome do PS, retomou Carlos Enes um hábito necrófilo seu, recente, até como cronista do Correio da Manhã: "desenterrar" e descontextualizar excertos, e divagar sobre frases extraídas dos registos sobre os mortos, sendo que estes, por sua vez, têm a vantagem de sobre tais interpretações se manterem silenciosos. Porventura na ânsia de produzir a citação menos literária possível do único escritor de Língua Portuguesa já galardoado com o Nobel da Literatura, assim tomado como burocrata, bolçou: “É preciso cumprir o que foi assinado”.
E, claro, o PS votou contra, mesmo reduzido o Projecto de Resolução a "nada de nada", pois até um Grupo de Trabalho sem motivos, sem objectivos e sem prazo é vagamente ameaçador do "facto consumado", sobretudo agora que o Senado Brasileiro está a "simplificar e aperfeiçoar o AO", ipsis verbis... A ala maioritária do CDS-PP, que também votou contra (alinhada com Portas), frisou: é agora que o Brasil põe em causa o AO que nós não podemos fazê-lo! Qualquer reflexão inconsequente suscita temor; porque será? Ainda assim, o perturbador Projecto "nada de nada" foi aprovado pela maioria da maioria.
Em pleno vácuo, poucas bolhas de ar respirável... Ostensivamente defensor da Língua, fazendo ponto de honra na sua interpretação desassombrada dos valores histórico-culturais colectivos, rendo homenagem a Michael Seufert, do CDS-PP, e posso imaginar o que terá sentido ao ver descambar o seu perseverante trabalho de bastidores no descalabro que se viu. O deputado-poeta Miguel Tiago, embora pesando-lhe a rigidez do partido qual remorso de saber ter voz própria, lutou também tenazmente pela preservação do património linguístico. A sua redacção do Projecto de Resolução do PCP foi a única que incluíu a palavra "desvinculação". Rejeitado pelos autodesignados "partidos do arco da governabilidade", claro; e segue o vira-o-disco-e-toca-o-mesmo, imperam os "pactos de regime" alheios ao interesse nacional.
Talvez jovens como eles lograssem mudar os partidos políticos por dentro. Ou talvez também eles se viessem a acomodar; ou talvez acabassem por ir-se embora, como tanta gente de bem. Creio que não saberemos; há uma urgência, um anseio, que não pode esperar, não aguenta muito mais.
Uns dias antes, farto de ser Alto Comissário da Casa Olímpica da Língua Portuguesa, lá no Rio de Janeiro, regressara Miguel Relvas ao seu relvado, encabeçando o Conselho Nacional do PSD.
Entretanto, em Abril maiúsculo, a multidão gritou na rua uma força nostálgica da alegria de ser e de participar.
Entretanto, vendo tantos fazer figuras semelhantes às que são feitas pelas três figuras de topo do Estado Português, sabemos que as paredes da AR corporizam hoje as barricadas de um poder cada vez mais dissociado das pessoas, mais cleptocrático, mais ilegítimo. Compreendemos cada vez melhor estoutro "Estado a que isto chegou".
Entretanto, morreu Vasco Graça Moura. A perda irreparável dá ainda mais garra aos que travam este combate identitário de quase três décadas também pelos que não estão já fisicamente connosco. Foi cremado. Se pudesse ver a boçal nota de condolências emitida pela Presidência da República, repensaria o "cavaquismo" relembrando dos Clássicos o peso relativo das cinzas? Expende Hannibalem!
Entretanto, semeiam-se vigílias na noite, acendem-se flores no caminho. Toda a esperança, mais do que legítima, é obrigatória. Está nas nossas mãos.
Médica, escritora e activista cívica