Da solenidade dos GYBE! à festa dançante dos Darkside
Há muitos festivais no festival NOS Primavera Sound do Porto. Ao segundo dia começámos embalados com rock e acabámos em dança.
Não é só o que se quer ver. É também o que não se quer ver. Por exemplo, os Pixies. Desde que regressaram ao activo, já os vimos inúmeras vezes. Basta. Optámos pelos canadianos Godspeed You! Black Emperor, que tocavam à mesma hora, no palco mais bonito de todos, o All Tomorrow Parties (ATP), espécie de clareira encantada no meio da floresta. Também eles regressaram nos últimos anos, depois de terem marcado o cenário do rock mais exploratório do final dos anos 1990 e inícios da década 2000. Se hoje vibramos com outros grupos do Canadá como os Arcade Fire ou os Broken Social Scene, a eles o devemos em grande parte. Foram fundadores, mostrando às novas gerações que se podia desconstruir o rock.
Para quem já os viu muitas vezes, como no nosso caso, não existe o efeito surpresa. Mas há o sentimento de regresso a uma casa apaixonante. Por vezes são solenes. Outras abrasivos. Mesmo quando se entra na estrutura da música do colectivo, prolongadas digressões instrumentais, feitas de distensões, do quase silêncio ao grito ruidoso, com violino, guitarras, baterias e vídeos misteriosos projectados em tela gigante, participando no mesmo fluxo, é difícil ficar-lhes indiferentes. E foi isso que aconteceu mais uma vez.
No Primavera todas as propostas têm o seu público. Os Pixies chamaram mais gente, mas os Godspeed também não se podem queixar. Continuam a ter admiradores fervorosos. As Warpaint ainda não geram o mesmo tipo de adesão, até porque a sua proposta é totalmente diversa mas, ao final do dia, foram aglomerando cada vez mais gente à sua frente, gradualmente seduzida. A proposta das quatro americanas não é nada óbvia, um rock de envolvimento físico suave, com qualquer coisa de hipnótico e de levemente sensual.
As quatro mantêm-se quase sempre imperturbáveis em palco. Não há histrionismos. Solos ruidosos de guitarra. Baterias galopantes. E no entanto prendem. A sua música solta um aroma narcótico enleante. Às tantas uma delas apontou para um clarão no horizonte. O céu estava carregado. A chuva ameaçava. Mas uma luz brilhava na direcção do mar. “É o sol a pôr-se, ou a lua a nascer?”, interrogou, dizendo de seguida que a confusão tinha a ver com cansaço. Não admira que David Lynch seja um dos admiradores das Warpaint, há qualquer coisa nelas de levemente enigmático. E mesmo que nem sempre se perceba porquê, a sua sonoridade acaba por conquistar.
Numa altura da história da cultura popular em que as diversas temporalidades se sobrepõem, influenciando-se de forma porosa, os ingleses Slowdive trataram de mostrar que podiam ter acabado de formar-se – apesar de se terem iniciado no final dos anos 1980, de terem terminado actividade em 1995 e de se terem reunido este ano.
O ano passado os My Bloody Valentine – com quem partilham afinidades estéticas – tinham sido o caso mais evidente de divisão de opiniões no festival. Mas o grupo liderado por Neil Halstead não chega a tanto. Onde os Valentine radicalizam, os Slowdive confortam.
O centro da sua sonoridade é ainda as camadas sobrepostas de ruído das guitarras com pedais de efeitos, mas há um travo melódico e uma sensibilidade pop mais acentuada na sua música, com influências folk pelo meio. Mais do que disrupções, criam ambientes de névoa, que funcionam particularmente bem quando resgatados às canções daquele que é o seu álbum mais conseguido – Souvlaki (1993). O público, esse, pareceu sempre compenetrado e embalado na música dos ingleses, abanando a cabeça ao ritmo das modelações sonoras.
À meia-noite mudou o figurino e entrou a dança. É verdade que o NOS Primavera Sound construiu a sua reputação em torno das avenidas mais alternativas do rock anglo-saxónico. Mas o seu raio de acção vai bem mais além. Por exemplo, até aos John Wizards, um sexteto da África do Sul que trouxe celebração em grande à tenda Pitchfork.
A sua música está sempre no fio da navalha do ilustrativo, mas nunca chega a sê-lo, numa simbiose descomplexada entre guitarras afro-pop, melodias R&B ou ritmos que tanto desembocam no balanço suave do dub, como numa corrida desenfreada que parece resgatada à música ‘disco’. Parece tudo demasiado óbvio e no entanto não o é.
Para muito boa gente que não os conhecia, o grupo de John Withers acabou por ser uma das surpresas da noite, com o vocalista e agitador Emmanuel Nzaramba a distribuir juras de amor eterno ao público, sem se perceber se estava a ironizar ou a ser sério. É nessa salutar ambiguidade que o colectivo se move, fazendo a festa de forma contagiante com todos os materiais à sua disposição, sem hierarquias, do som mais foleiro ao solo de guitarra mais sofisticado.
De seguida fomos espreitar Trentmoller – produtor dinamarquês das músicas de dança, que se apresentou em palco com uma série de músicos, para aquele que parece ter sido um bom concerto de electrónica orgânica, encorpada, com laivos de rock – para de seguida regressarmos à tenda Pitchfork, completamente cheia, para os Darkside, o mais recente projecto do americano Nicolas Jaar.
Foi um bom concerto. Nicolas Jaar, nos teclados e nas programações, e por vezes na voz, foi, como sempre, preciso e envolvente, comandando o ritmo electrónico dançante, ou os ambientes introdutórios, enquanto o multi-instrumentista Dave Harrington ia arrancando acordes dissonantes ou psicadélicos da sua guitarra.
A resposta do público foi sempre efusiva, até porque Nicolas já é um nome firmado por estas bandas, com os temas do álbum Psychic (2013) a ganharem contornos bem mais vibrantes do que em disco.
Para fim de noite, mais música de grande apelo físico, com o norueguês Todd Terje que, sozinho, sem grandes artefactos técnicos, provocou a festa com sonoridades espaciais e evolutivas, na linha neo-disco, com tanto de exuberante como de nostálgico.
Afinal como o segundo dia do festival, misto de sonoridades do passado, presente e futuro da cultura pop, todas elas participando no mesmo fluxo contínuo.
Texto corrigido às 13h36: Todd Terje é norueguês e não sueco.