Composta por mais de 20 ensaios sobre as vidas e as obras de pensadores contemporâneos de esquerda, a antologia Pensamento crítico contemporâneo, organizada pela UNIPOP e agora publicada pelas Edições, 70 vai buscar a sua unidade às visões progressistas — de crítica em relação à situação presente, de denúncia radical das ideologias conservadoras e de proclamação de dimensões utópicas ou revolucionárias. Claro, tais visões não constituem um todo homogéneo. E é na sua diversidade de perspectivas que se encontra uma enorme riqueza e um gosto pela complexidade. Num panorama nacional e académico como o nosso, iniciativas como a deste livro — que demonstram o intuito de inverter os termos das trocas desiguais ou da mera recepção dos pensadores mais criativos do ponto de vista da produção das ideias — necessitam de ser tratadas com respeito.
Começo por um facto que não é despiciendo. Os organizadores inspiraram-se numa ideia de Michel Foucault para designar o que entendem por pensamento crítico contemporâneo: “A crítica do que somos é simultaneamente a análise histórica dos limites que nos são impostos e uma experimentação de ir para além deles.” Uma tal formulação — feita em 1978, mas publicada só em 1990 — sugere aos mesmos organizadores a seguinte interpretação: (i) a História contemporânea foi caracterizada por processos de formação de sociedades demoliberais, promovidos a fim último da História nos finais do século XX, mas também incluiu “anseios e vontades que animaram as histórias de resistência e alternativa”; (ii) se é necessário reflectir sobre estas últimas, será também necessário ir da História do século XX de modo a situar o pensamento crítico entre a História e os “limites visíveis” por ela estabelecidos; (iii) por último, o pensamento crítico tem uma “função desnaturalizadora, capaz de levantar o véu da ideologia que torna aceitável o mundo em que vivemos e, simultaneamente, de revelar as suas condições de possibilidade” (p. 9).
Fizeram bem os organizadores em chamar a atenção para o célebre texto de Foucault. Porém, tenho muitas dúvidas acerca do modo como o interpretaram. Dúvidas quanto ao significado atribuído ao trecho citado, para já não falar na sua capacidade para traduzir o essencial do pensamento do filósofo francês dobrado de historiador. Sem mais rodeios, penso que os organizadores forçaram o sentido das palavras de Foucault com o intuito de se servirem da sua autoridade para fazer valer o modo como entendem “o pensamento crítico contemporâneo”. Não é pelo prazer em apontar os desvios ao sentido original do texto de Foucault que passo a inventariar os erros de interpretação, mas antes para clarificar o programa em que convergem organizadores e autores do livro.
1. Para reconstituir a génese do pensamento crítico, Foucault recuou a Kant e ao Iluminismo, às formações discursivas dos séculos XV e XVI e, por último, às regras e pastorais definidoras da governamentalidade dos conventos medievais. A este respeito, o texto de Foucault corresponde aos exercícios analíticos que o mesmo tinha seguido desde a Histoire de la folie à l’âge classique (1961) e que, no segundo volume da sua Histoire de la séxualité — L’usage des plaisirs (1984), o levaram a ir ainda mais atrás, para tomar os textos da Antiguidade clássica como um dos seus objectos. A orientação histórica de Foucault — em paralelo com a vitalidade das investigações históricas francesas suas contemporâneas, a começar pelo interesse generalizado em compreender mudanças na longa ou mesmo longuíssima duração — revelou-se, na sua obra, uma preocupação constante com a análise das diferentes texturas temporais, das continuidades e das rupturas dos regimes de saber e de poder, bem como dos processos de formação da modernidade.
Ora, à preocupação conjunta pela longa duração e pelas diferentes camadas de tempo que coexistem na mesma sociedade — a que poderá sempre acrescentar-se uma permanente intenção de romper com as periodizações habituais —, os organizadores e autores deste livro respondem com uma noção acanhada da contemporaneidade. Claro que poderá sempre objectar-se que se trata de uma resposta deliberada, porque restrita ao século XX. No seu interior, a genealogia definida pela vida e pela obra de um conjunto de intelectuais apresenta, se tanto, como pais fundadores, recuados no tempo, Ernst Bloch (1885-1977), Theodor Adorno (1903-1969) ou Jean-Paul Sartre (1905-1980). Assim, ao contrário de Foucault, que encontrava numa História do tempo longo os laboratórios de análise que lhe permitiam fugir às limitações do presente, este livro parece apostado em limitar o exercício da crítica a alguns pensadores contemporâneos. Um tal procedimento, por mais progressista que queira parecer ao satisfazer-se na rememoração de vários autores na moda, é análogo a um dos modos mais limitados de praticar as ciências sociais. É o que sucede na prática de alguma sociologia, economia ou ciência política quando a obsessão de delimitar territórios para a pesquisa se impõe para fazer face às solicitações dos chamados processos racionais de tomada de decisão em áreas de políticas públicas.
2. Para enunciar o segundo aspecto, começo por uma citação de Foucault, na sua conferência de 1978: “A crítica existe apenas em relação a outra coisa que não ela mesma — ela é instrumento, meio para um devir ou verdade que ela não saberá e que ela não será, ela é um olhar sobre um domínio onde quer desempenhar o papel de polícia e onde não é capaz de fazer a lei.” Neste sentido, a crítica constitui-se num instrumento para analisar domínios concretos. Se desempenha “o papel de polícia”, é porque se lhe atribui um papel de vigilância constante desempenhado, na prática do dia-a-dia, por um polícia de rua. Se se considera que “não é capaz de fazer lei”, é porque, ao confundir-se com uma prática, não pretende impor modelos normativos. O que equivale a dizer da crítica o mesmo que Marc Bloch e Pierre Bourdieu disseram dos métodos: que estes se justificavam apenas em função dos resultados, logo, não podiam ser tomados como um fim em si mesmo. Por estas razões, poder-se-á aplicar, aos devotos da crítica considerada como um fim em si mesmo, o mesmo tipo de denúncia que Bourdieu formulou — recorrendo à linguagem quase chocarreira da paródia — quando se referiu aos “cães de guarda da metodologia”. Por um instante, e por muito que me custe confessá-lo, não posso deixar de imaginar essa imagem dos cães de guarda do pensamento crítico, agarrados ao seu autor. Como se cada um tivesse direito ao seu exemplar de pensamento crítico e só conseguisse existir através dele. Num cenário desta natureza, onde cada autor surge acompanhado do seu guarda, o espaço para a construção de alternativas está ocupado. Enfim, os riscos que existem de cada um essencializar o seu autor para o guardar melhor, mesmo quando se fala em nome de um relativismo cultural, só são ultrapassados pela ilusão de que existem prontos-a-pensar radicais e críticos.
Em oposição a um tal cenário, quais são os domínios concretos em que o pensamento crítico deverá servir? São os que constituem uma já longa tradição humanística, interessada nos instrumentos de prova e de demonstração, cujas origens o classicista Arnaldo Momigliano encontrava no trabalho de busca de vestígios materiais dos antiquários do Renascimento. Os mesmos domínios são também os que configuram progressivamente as ciências sociais, a começar pela formação lenta da economia política, que Marx investiu de uma forte dimensão empírica com base em análises históricas e comparativas. Não fiquem igualmente esquecidas as experiências de investigação e de ensino, academicamente mais institucionalizadas, que procuraram articulações de conjunto em torno da formulação analítica e empírica de problemas concretos — dos Annales às Actes de la recherche en sciences sociales, de Simmel a Weber, de Wright Mills a Robert Merton, de Panofsky a Francis Hackell, de Jack Goody a James C. Scott, de Richard Hoggart e Raymond Williams a E. P. Thompson. Também Foucault, na sua conferência, identificou um dos momentos altos do pensamento crítico no trabalho concreto desenvolvido em torno da Bíblia desde o Renascimento a Pierre Bayle e à denominada, por Paul Hazard, crise da consciência europeia (numa obra traduzida por Óscar Lopes num português que deveria servir de padrão para reescrever alguns dos capítulos do livro em discussão).
Para que não haja dúvidas: há neste livro sobre o pensamento crítico uma orientação mais filosófica do que histórica e uma preferência pelas especificidades de autores individuais, “contemporâneos”, da cultura ocidental, em detrimento dos domínios concretos de objectos sociais e de problemas sociológicos e antropológicos sobre os quais estes últimos, ou pelo menos alguns deles, se debruçaram. Mais: há no mesmo livro um tom condescendente em relação às ciências sociais. Estas são representadas, em 23 capítulos, quase exclusivamente pela atenção dada ao pensamento de Benedict Anderson, Bourdieu, Foucault e E. P. Thompson. E a mesma condescendência prolonga-se na pouca atenção que acabam por merecer as questões de género e do feminismo: no livro, duas professoras de literatura tratam do pensamento de duas feministas (Braidotti e Spivak), e um antropólogo, bem conhecido pela sua militante defesa do direito à diferença numa sociedade tão machista como a nossa, ocupa-se das ideias de Judith Butler.
3. No livro em causa, uma mescla de filosofia política e de história das ideias do século XX forma as duas disciplinas a partir das quais se pretende fazer reconhecer como legítimo um novo idealismo. A este respeito, a insistente necessidade de ultrapassar os limites da História constitui o modo de desenhar uma espécie de nova utopia idealista, cuja bandeira é formada pelo pensamento crítico. Ora, a este género de utopismo idealista, cujas condições de possibilidade se encontram no exercício virtuoso das referidas disciplinas, o próprio Foucault contrapôs um quadro analítico bem diferente. Muito simplesmente, afastou-se das abordagens mais idealistas e do círculo vicioso das ideias que se explicam em função de outras ideias. É que, para ele, entre os “múltiplos elementos determinantes”, contrários a qualquer tipo de fechamento explicativo, haveria que considerar “as relações que permitem dar conta desse efeito singular”. Por sua vez, no seu entender, estas últimas eram sobretudo “relações de interacção entre indivíduos ou grupos, isto é, elas implicam sujeitos, tipos de comportamentos, decisões, escolhas”. Porém, se Foucault rompe com o idealismo, incitando a uma análise relacional das interacções entre indivíduos e grupos, os autores deste livro ficaram nele enredados. Se tanto, as análises do social e as referidas interacções são no mesmo livro reduzidas a uma série de conceitos, onde a voz do sujeito, a governamentalidade, a economia moral ou a própria lógica de relações no interior de um campo desempenham uma espécie de função compensatória.
4. Porquê? Qual a razão por que se sentem autorizados intelectuais e académicos portugueses de esquerda, com uma orientação crítica sincera, a investir de forma sistemática na compreensão do pensamento de outros autores de ampla circulação internacional e a fazer com eles uma espécie de bandeira do pensamento crítico? Será que o que os move é um desejo de internacionalização? Intenção bem legítima — digo-o mais uma vez — essa de ir interrogar os grandes autores no seu pronto de origem, traçando-lhes o retrato e reconstituindo as suas intenções. Esta é mesmo a principal lição a retirar do livro e só por isso vale a pena recomendar a sua leitura.
Mas outras explicações existem para compreender o militante desejo de praticar filosofia política, a paredes meias com a história das ideias. Por exemplo, na sua breve introdução, os organizadores aduzem o argumento de que o seu modo de fazer e estudar a filosofia política contrasta com o predomínio no meio universitário da “ideia de que é preciso ‘não sujar as mãos’ com o real”. Mesmo discordando desta denúncia, percebo a estratégia da vitimização que leva o intelectual comprometido — como sucedeu com Sartre no Maio de 1968 — a revoltar-se contra a academia e os seus cuidados assépticos. Julgo, no entanto, que a principal explicação para tal investimento numa filosofia política de largo espectro, capaz de congregar diferentes facções progressistas e de esquerda, se encontra na necessidade de encontrar respostas credíveis, capazes de fornecer visões de conjunto, face às investidas de uma direita conservadora. De facto, os círculos neo-liberais têm exercitado, de forma porventura ainda mais sistemática, o mesmo gosto idealista pelo raciocínio abstracto e a exegese discursiva, com base nas obras de Heidegger, Carl Schmitt, Leo Strauss, Hayek, Isaiah Berlin, Popper, Raymond Aron ou Robert Nozick.
Aliás, o gosto pela filosofia política não se limita, nos dias de hoje, a uma simples luta entre a direita liberal e a esquerda, filiada em Agamben, Badiou, Derrida, Negri ou Zizek (este último deixado de fora deste volume). Muito recentemente, também Eduardo Lourenço, com a autoridade imposta pelo seu estatuto de ancião, escreveu um escusado posfácio inspirado nos trabalhos filosóficos do Pseudo-Dionísio, o Areopagita, ao livro de José Sócrates sobre tortura e democracia. Esta promiscuidade imposta pelos valores da militância não é inédita. A cada um a sua bandeira e o seu tambor. In illo tempore, menos pasmo suscitou o facto de Jorge Borges de Macedo ter prefaciado uma série de discursos de Santana Lopes... O mesmo sentido pode ser atribuído ao entusiasmo com que a academia portuguesa convive com presidentes e ministros, criando uma espécie de mescla ou, como disse há muito Miguel Leitão de Andrade, uma “selada??.
É que, ao contrário do que julgam os organizadores deste livro, são vários os académicos, como muitos dos que escrevem neste livro, que não querem ser assépticos. Convivem bem de mais tanto com a política militante como com as suas correspondentes filosofias. E o risco é de que o pensamento crítico se submeta ao mundo do branding em que a academia se transformou. Confundindo alhos com bugalhos, cada qual escolhe um autor, uma escola ou um conceito e submete-se a uma lógica em que o próprio pensamento crítico corresponde, acima de tudo, a uma lógica de mera filiação autoral. Eu tenho o meu autor e tu tens o teu autor, numa lógica de barricadas, de maniqueísmos simplificadores, que reduz a academia a nós e a eles.
Em paralelo, a linguagem da “desnaturalização” (que na realidade só muito recentemente deixou de ser a da “desconstrução” pós-moderna...) mais parece um lugar-comum. Uma espécie de tambor que todos tocam, sem lhe dar precisa substância. Basta evocar a palavra para que ela produza um efeito... Tal como se as palavras, ao serem nomeadas, tivessem um poder mágico, conforme documentou há muito João Pedro Ribeiro. Claro que o mais importante seria “desnaturalizar” os discursos feitos em nome da desnaturalização e iluminar as suas “condições de possibilidade”. Estou mesmo convencido de que uma delas está ligada ao estranho desinteresse pelas condições históricas da emergência do seu próprio objecto de análise.
Enfim, através de todas estas práticas, erguem-se bandeiras, tocam-se tambores, faz-se a continência a este e àquele autor, mas do que se foge — sobretudo na academia — é de pôr o dedo na ferida, através de uma prática analítica e empírica que parta de problemas e que não se reduza a nenhum modelo, a nenhuma visão de conjunto e a nenhum livro de receitas baseado em teorias pré-construídas.
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