O investigador brasileiro que pôs a pop portuguesa a ver-se ao espelho
Tudo Isto É Pop, de Tiago Monteiro, resulta da temporada que o investigador passou em Portugal ouvindo, vendo e estudando o presente e passado da música portuguesa
Quando Tiago Monteiro chegou a Portugal em 2007 não imaginava ainda Tudo Isto É Pop. Doutor em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense e professor do Instituto Federal do Rio de Janeiro, aterrava em Lisboa numa busca. A das raízes que, num típico desejo de independência e emancipação, renegara na adolescência. Portugal, onde nasceram os seus pais, o país que via representado pelos galos de Barcelos, Fátima, fado, Roberto Leal ou Francisco José, pouco lhe disse durante esse tempo.
Abrimos Tudo Isto é Pop (Editora Caetés, 2013), o livro nascido da tese de doutoramento que defendeu em 2012, e lemos o primeiro dos agradecimentos: “À Mãe, pelos discos do Carlos do Carmo que primeiro reneguei e depois surrupiei”. Viramos a página e lá está, em jeito de epígrafe, a letra de Nem lhe tocava, canção de Samuel Úria.
Tudo Isto é Pop, disponível em Portugal na Ler Devagar da Lx Factory, em Lisboa (ali teve lugar em Abril o lançamento português da obra), é o livro que nasceu de um reencontro – o de Tiago com as suas raízes familiares. É, depois, uma obra que se debruça sobre o passado e o presente da música portuguesa, entre o fado e o folclore, entre o nacional-cançonetismo e o boom do rock português, até mergulhar profundamente na diversidade do panorama actual. O trabalho resulta da estadia de Tiago Monteiro em Portugal entre 2009 e 2010, período em que se dividiu entre as entrevistas, a audição da música, a pesquisa bibliográfica, o acompanhamento do que a imprensa relatava no momento (o Ípsilon, suplemento cultural do PÚBLICO, o Diário de Notícias ou a revista Blitz, surgem profusamente citados) e a frequência dos espaços onde a música se fazia ouvir.
Tendo em conta a escassa produção bibliográfica dedicada à cultura pop em Portugal, a obra de Tiago Monteiro é uma raridade. Considerando que Tudo Isto É Pop é um livro em viagem, no sentido em que foi escrito para o leitor brasileiro, com quem pretende com ele estabelecer um diálogo profícuo, torna-se mais raro ainda. Como explica Tiago Monteiro em entrevista por e-mail ao PÚBLICO, “para falar dos Golpes, era necessário retroceder até a época dos Heróis do Mar, e para entender a controvérsia despertada pelos Heróis era preciso falar das apropriações da tradição feitas pelo Estado Novo, e se você não ficasse atento acabava tendo que voltar até Camões para que o percurso fizesse sentido.”
Tiago Monteiro não precisou de fazer tão longa viagem. Em Tudo Isto É Pop põe um espelho sobre nós próprios para mostrar o que, neste preciso momento histórico, somos musicalmente.
Quando chegou pela primeira vez a Portugal, fê-lo não só invadido de grande curiosidade, mas também sôfrego por percorrer o país. Em duas semanas, conheceu-o de norte a sul, do interior ao litoral. Que Portugal musical descobriu perante si?
Descobri um país musicalmente mais plural do que o estereótipo de música portuguesa difundido no Brasil me levava a crer. De maneira geral, o imaginário que os brasileiros conservam da cultura portuguesa ainda é muito preso às formas tradicionais do fado, do folclore e do (neo)cançonetismo. Mesmo o Roberto Leal, que de acordo com esta percepção estereotipada representaria, por metonímia, toda a música portuguesa para o público brasileiro: quando aí residi, em 2009, ele estava às voltas com os discos de aproximação à sonoridade tradicional mirandesa, distante, portanto, da fórmula consagrada pelo Arrebita e congéneres. Mas seis meses depois estava num programa de TV do Brasil ensinando receitas de bacalhau e dançando o vira. Parece-me que, mesmo quando existe a possibilidade de romper com o senso comum, o Brasil faz questão de apropriar-se de Portugal a partir dele.
Dá conta de uma realidade musical muito diversa, em que o rock se funde com tradições rurais, em que o fado se renova, em que uma nova vaga de cantautores convive com música que reflecte os ritmos da diáspora africana. O que une, se algo, todas estas manifestações?
O que, a meu ver, uniria estas manifestações contemporâneas seria precisamente a postura mais relaxada no apropriar-se de múltiplas matrizes. É pegar na sonoridade rural, misturar com certos códigos do indie ou do pop, incorporar a iconografia dos Heróis do Mar e produzir algo ao mesmo tempo muito particular e que dá conta de dinâmicas globais. O mesmo se aplica a fenómenos como os Buraka Som Sistema, embora as matrizes e os processos históricos que embasam tais movimentos sejam distintos.
Aponta que vários músicos extremamente populares, como Tony Carreira ou Quim Barreiros, conotados com a chamada música pimba, estão praticamente ausentes das páginas da imprensa especializada ou das páginas de Cultura dos principais jornais. Como se coexistissem dois portugais, distantes um do outro.
Dois, não. Há vários, e é impressionante como estas formas coexistem num território aparentemente tão pequeno. “De Bragança a Lisboa são nove horas de distância”, já diziam os outros, e nestas nove horas você percorre uma diversidade geográfica, humana e cultural vastíssima. Talvez seja por isso que as Festas Populares da Margem Sul tenham-me impactado tanto, porque elas me pareciam uma espécie de microcosmo de Portugal ao alcance de um comboio da Fertagus. Eram os Mão Morta no palco principal e um tipo com um teclado foleiríssimo cantando canções de duplo sentido no palco ao lado. Todo aquele excesso sensorial das luzes piscando, dos cheiros de farturas, e os Blasted Mechanism cantando naquela língua inventada deles.
Identifica o momento do seu reencontro com Portugal na noite em que viu os Xutos & Pontapés tocar Homem do leme na televisão, durante o Rock in Rio 2004. O que houve nesse momento que tenha despertado em si o desejo de redescoberta das suas raízes?
Por um lado, tem a ver com uma ideia de descentramento, ou melhor dizendo, de deslocamento do centro, do lugar de onde se olha. No Brasil, como o desconhecimento acerca do pop/rock português é amplo, num primeiro momento a minha adesão afectiva a artistas como os Xutos ou Madredeus representava algo que, num certo sentido, funcionou como marca de distinção. Como estava num momento de afirmação de identidade, pareceu-me estratégico aderir a estes discursos dos quais, durante boa parte da adolescência, eu havia desejado afastar-me. As pessoas da minha geração escutando Strokes e eu me comovendo com Ecos na Catedral, sendo deliberadamente uncool.
Quando regressou para elaborar a sua tese de doutoramento, apercebeu-se de uma efervescência musical heterogénea, onde destaca nomes como B Fachada, Cacique 98, Buraka Som Sistema, Dead Combo ou Deolinda. Descobre-o em paralelo com a crise que se abatera sobre um país sob intervenção da troika. Há relação entre uma coisa e outra?
Certamente que o contexto de crise afecta o âmbito da cultura. O desafio é tentar não articular estas variáveis de forma mecânica, como se de repente todo e qualquer pronunciamento artístico fosse um statement contra a troika. Neste sentido, e como tudo na vida, há associações mais directas e outras mais subtis, e eu tendo a acreditar que estas últimas sobreviverão melhor ao teste do tempo do que aquelas. Tomemos por exemplo o caso dos Deolinda: o Parva que sou é uma canção necessária e fundamental no contexto do momento em que foi escrita, mas há uma literalidade no discurso da canção que torna-a menos interessante, como radiografia do contemporâneo, do que coisas como a Garçonete da casa de fado tematizando fluxos migratórios e a presença laboral brasileira em Portugal. Alguns temas do Zeca Afonso e do Sérgio Godinho passam-me a mesma sensação: entre Os vampiros e Viva o poder popular, fico com a primeira.
Refere o conceito de “portugalidade” logo na introdução. É um termo muito usado, mas explicá-lo concretamente parece quase uma impossibilidade. O Verdes Anos de Carlos Paredes, por exemplo, representará como poucas outras músicas o que é o espírito português. Mas é algo pressentido, não passível de explicação definitiva. É por isso que defende que o termo reflecte algo que não é estático, que está em construção constante?
Sim. É preciso, sobretudo, atentar para o carácter construído destas percepções. Identificar Portugal na guitarra do Paredes é tão “não-natural” quanto fazê-lo numa canção do [Legendary] Tigerman, no sentido de que não consumimos música por meio de blind tests, e embora o primeiro nos pareça mais automático em termos de reconhecimento, também isto é fruto de um processo de construção. Pelo contrário, a recepção de qualquer artefacto cultural é sempre afectada pelas circunstâncias nas quais o processo se dá, e isto às vezes não tem que ver com os aspectos musicológicos das canções, mas com as condições de produção e circulação das mesmas. O oposto deste argumento é cair num essencialismo tautológico acerca da portugalidade, forma rebuscada de ilustrar a imagem do cão que corre atrás do próprio rabo: é reconhecido como português aquilo que contém determinadas marcas daquilo que é reconhecido como português. Aí, de facto, não há-de nos sobrar nada além do fado, do folclore e do Roberto Leal.
Tudo Isto É Pop é também sobre a forma como o Brasil olha Portugal e se relaciona com a sua cultura. Fala de uma relação assente de parte a parte em equívocos e clichés, sob as quais, institucionalmente, tudo se esbate na retórica do “país irmão”. Estaremos condenados a ela?
O problema do discurso do “país irmão” é que ele tenta colmatar, pelo viés da cultura, lacunas sociais, políticas e económicas que não serão resolvidas à base das boas intenções. E depois há aquilo, o brasileiro é muito bem-vindo se for para cantar bossa nova no Speakeasy, mas quando é chegada a hora da fila do SEF a postura muda. Como eu tive a oportunidade de regressar a Portugal umas seis ou sete vezes depois da primeira viagem, acabei testemunhando uma mudança no modo como a presença brasileira era vista, sobretudo pelos media, e que hoje também me parece menos tensa, não sei se pela maioria dos brasileiros ter-se ido embora. E também não sei se a reorientação dos fluxos no pós-crise (agora, o Brasil volta a ser destino de emigrantes portugueses, embora de um perfil distinto daqueles que vieram nos anos 1930-1950) será capaz de reconfigurar a percepção que temos da cultura portuguesa. Eu secretamente desejo que sim.
Que impacto está a ter o livro na forma como se olha no Brasil a música portuguesa?
Este é o momento em que eu gostaria de dizer que o livro está a actuar como a ponte que determinados processos históricos derrubaram, mas infelizmente por enquanto o alcance da obra é mais ou menos o mesmo da música portuguesa contemporânea no Brasil: endereçada a um nicho restrito, para o que talvez contribua o facto de ser um livro derivado de uma tese de doutoramento, e aqui ainda há este estigma de que a academia e a sociedade não conversam. Vejo, contudo, tanto na ida de nomes que mencionou para Portugal [Marcelo Camelo, Mallu Magalhães, Rodrigo Amarante], quanto em iniciativas como o “Música Portuguesa Brasileira”, que o Pierre Aderne capitaneou por aí em 2011, e depois se transformou numa série de documentários para o Canal Brasil, tentativas bastante honestas de estreitar o contacto entre nossos imaginários musicais. Isto é muito mais eficiente do que a cantiga do “país irmão”. Só que não vai ser do dia para a noite que certas percepções irão mudar, ainda mais trabalhando na lógica dos nichos, fora dos circuitos hegemónicos.
Algo do que viu e ouviu em e de Portugal após ter terminado a tese justificava uma adenda, um acrescento, uma nova linha de raciocínio?
Sinto ter encerrado um ciclo pessoal e profissional com o lançamento deste livro, mas ao mesmo tempo tenho certeza de que a cultura mediática portuguesa continuará me fascinando como objecto por um bom tempo. Talvez pelo facto de as questões subjectivas que ela articula em mim ainda não terem se resolvido. Agora, estou tentando iniciar uma investigação sobre cinema de terror em Portugal. No fundo, é tudo um pretexto para voltar.