O Congresso não morreu mas a dinastia Nehru-Gandhi vai cair

É difícil imaginar a Índia sem o Congresso ou sem a dinastia Nehru-Gandhi. Mas o partido foi agora trucidado e a “família” parece destinada a transitar para os livros de História. É a identidade da Índia que está em jogo.

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A Índia muda. Dentro de 15 anos, a população indiana será mais numerosa do que a chinesa e, sobretudo, muito mais jovem. Caso triunfe ou fracasse na transformação, a sua sorte terá um impacto em todo o mundo. Igualmente importante é saber se conservará o seu modelo pluralista e multicultural ou se deslizará para um modelo de sociedade mais próximo do nacionalismo hindu.

Por que nos é difícil imaginar a Índia sem o Congresso Nacional Indiano (Congresso) e sem os Gandhi? Por razões históricas. O Congresso foi fundado em Bombaim em Dezembro de 1885 e, até hoje, toda a história da Índia passou por ele. Nos anos 1920 e 1930, sob a liderança do Mahatma Gandhi, lançou as campanhas de resistência não violenta contra o domínio britânico. Modelou depois as instituições da Índia moderna, apostando em construir uma democracia de inspiração anglo-saxónica num país novo, multiétnico, caótico e dilacerado por conflitos. Não era uma escolha óbvia. As primeiras eleições, em 1951, foram qualificadas como “o maior desafio da História das democracias”. Com breves intervalos, governou a Índia desde a independência, em 1947.

Quanto à “Família”, escreveu há anos o britânico The Guardian: “A marca Nehru-Gandhi não tem par no mundo — um membro da família esteve no poder durante 40 anos desde a independência. O fascínio da primeira família da Índia combina o direito a governar da monarquia britânica com o trágico glamour do clã Kennedy na América.”

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Nehru com o neto Rajiv, em 1947, em Nova Deli Bettmann/CORBIS

A catástrofe de Maio

As eleições legislativas de Abril-Maio puseram em causa esta hegemonia. O Congresso foi laminado pelos nacionalistas hindus do Bharatiya Janata Party (BJP). Caiu de 206 deputados para 44, em 543 da Lok Sahba (câmara baixa). O BJP conquistou a maioria absoluta com 282 mandatos — ou 336, tendo em conta os aliados. O BJP penetrou em força nos eleitorados tradicionais do Congresso e dominou em quase todos os estados.

“O arquitecto da vitória, Narendra Modi, é também o primeiro chefe de governo nascido depois da independência, o primeiro a pertencer a uma casta baixa na ordem social indiana, o primeiro a ter experimentado a pobreza na infância e também o primeiro a não fazer parte das incestuosas elites políticas de Nova Deli”, sublinhou Dileep Padgaonkar, do Times of India e virulento crítico de Modi que, pela sua retórica, chegou a comparar com Mussolini e Hugo Chávez.

Não se trata de uma simples alternância, mas de uma mudança de era. Agora, prossegue Padgaonkar, o novo BJP de Modi “pode preencher o vazio criado pela débâcle dos partidos seculares. Estas eleições anunciam uma ruptura tectónica na política indiana”.

Constituíam também “um desafio existencial” para o Congresso, anotou o indianista Christophe Jaffrelot. “O Congresso é conhecido por ter a visão de uma Índia multicultural.” Os nacionalistas hindus têm uma visão distinta da Índia e pretendem identificá-la com a cultura hindu. “Se esta visão da Índia se tornar hegemónica, o lugar das minorias vai ser posto em causa e, consequentemente, o secularismo (ou melhor, o multiculturalismo) será também posto em causa. Estas eleições são importantes porque é a identidade da Índia que está em jogo.”

Os anos gloriosos

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O historiador Ramachandra Guha resume em poucas linhas o papel histórico do Congresso. “Entre 1885 e 1975, o Congresso desempenhou (globalmente) um papel progressista na História indiana. Congressistas como Gopal Gokhale [1866-1915], Mahatma Gandhi [1869-1948], Jawaharlal Nehru [1889-1964] ou V.J. Patel [1875-1950] conduziram o partido (e o país) para além das divisões sectárias. Antes da independência, o Congresso promoveu a igualdade social e o pluralismo cultural. Os seus melhores líderes desafiaram as entranhadas hierarquias de casta e género, abraçando novas ideias e novas tecnologias. Contudo, a sua conversão após 1975 [com Indira Gandhi] numa ‘empresa de família’ desgastou a sua credibilidade. Os mais talentosos indivíduos à procura duma carreira política passaram a mostrar-se relutantes em aderir a um partido dependente do patrocínio dos Nehru-Gandhi que o encabeçam.”

Conclui: “O primeiro e mais duradouro primeiro-ministro da Índia, Jawaharlal Nehru, ajudou a lançar as fundações de uma Índia democrática e unida. Promoveu a liberdade religiosa e linguística, construiu instituições científicas modernas e respeitou a independência da burocracia e do poder judicial. Se a sua política económica e a sua política externa são questionáveis, o seu serviço ao país é inquestionável.”

A Constituição de 1950 reflecte o trauma das centenas de milhares de mortos e dos milhões de refugiados da “partilha” de 1947: criou um Estado pluralista e multiétnico, abertamente oposto aos comunitarismos; e, sobretudo, uma democracia com um eficaz sistema de pesos e contrapesos, um Estado federal, uma justiça independente, uma imprensa livre e um exército rigorosamente apolítico.

O Congresso foi fundado por intelectuais indianos e britânicos com o objectivo de promover a emancipação e a cultura moderna dos indianos. Com o regresso de Gandhi à Índia, em 1915, vai transformar-se num movimento de massas anticolonial.

É desde a origem um partido dominado pelas castas altas, designadamente brâmanes, e pelas profissões liberais. Será conservador e reformista. Após a independência, o seu sucesso está ligado ao espírito de abertura e à vontade de transcender as linhas de divisão das castas e religiões. Assim, o advogado B.R. Ambedkar, líder do principal partido dos intocáveis, foi ministro da Justiça no primeiro governo independente, em 1947, e presidente da comissão que redigiu a Constituição.

Em segundo lugar, explica a indianista Aurélie Leroy, a estabilidade e longevidade do Congresso “assentam numa poderosa rede de notáveis conservadores, saídos principalmente de três meios: a intelligentsia, os proprietários fundiários que dominam uma miríade de pequenos agricultores, e os seus votos, e os meios de negócios, preciosa fonte financeira nas campanhas eleitorais. (…) Paradoxalmente, foram estas elites, saídas do topo da hierarquia de casta e de classe, que zelaram pela reprodução de um sistema político democrático ao mesmo tempo que zelavam pela defesa dos seus interesses.”

O fim do “sistema congressista”

O Congresso assumiu ao mesmo tempo a promoção dos agricultores pobres, a quem prometeu uma reforma agrária. O combate à discriminação das castas baixas e dos intocáveis (hoje autodesignados dálitas) culminará, nos anos 1980, no estabelecimento de quotas reservadas às “outras classes atrasadas” — na maioria, a casta dos sudras — e aos dálitas no acesso aos cargos públicos e ao ensino. Será uma medida duramente contestada por estudantes brâmanes.

O balanço é inequívoco. Em 1951, as três castas superiores (15% da população) ocupavam 65% dos mandatos políticos no Norte da Índia, enquanto os agricultores (52%) detinham 5% dos lugares. Em 2010, dos 29 estados da Índia, apenas quatro eram governados por brâmanes. Hoje são as castas baixas e os dálitas quem mais reivindica o seu estatuto de casta — têm orgulho e querem as quotas. Sublinhou Jaffrelot que acabaram por ser as castas a ter um papel essencial na “democratização da democracia indiana”. Em 1997, o dálita K.R. Narayanan foi eleito Presidente da República.

Durante décadas, o Congresso mostrou uma extraordinária capacidade de adaptação perante os movimentos de opinião, os contraditórios grupos de interesses, as rivalidades regionais, a esquerda e a direita. O politólogo Rajni Khotari chamou-lhe o “sistema congressista”. Durante muito tempo pôde falar-se num “Estado-Congresso”.

O “sistema congressista” entra em crise na era de Indira Gandhi em que o partido conhece várias cisões e perde a capacidade de gerir os equilíbrios. Indira vai compensar esta debilidade com um estilo autoritário e campanhas populistas de mobilização dos “pobres”.

No início dos anos 1980, começa a nova ascensão do nacionalismo hindu que vai abrir uma época de confrontos sangrentos com os muçulmanos. Emerge o seu novo partido, o BJP. O sistema partidário vai fragmentar-se na base das identidades regionais e de casta. Os dálitas afastam-se do Congresso e criam os seus próprios partidos. Os brâmanes deixaram de ter interesse em apostar num partido que os prejudica com as quotas. Não é apenas o Congresso mas os partidos nacionais que perdem o seu poder de atracção. O surto do BJP nestas eleições é a primeira correcção desta tendência.

Ascensão e queda  da “dinastia”

Em 1906, em Allahabad, o advogado Motilal Nehru escrevia ao seu filho Jawaharlal, então a estudar na Ingleterra, na aristocrática Harrow School: “Penso, sem vaidade, poder dizer que sou o fundador da família Nehru. Olho para ti, meu querido filho, como o homem que construirá sobre as fundações que eu lancei e terei a satisfação de ver uma nobre e famosa estrutura erguendo a sua cabeça para os céus.” Motilal será presidente do Congresso nos anos 1920. Redigiu em 1928 um projecto de Constituição para a futura Índia. Em 1929, por vontade de Gandhi, sucede-lhe o filho Jawaharlal. Este tentou recusar. Respondeu-lhe Motilal: “O que o pai não pode acabar, acaba-o o filho.” Jawaharlal cumpriu as expectativas. A história é contada por Ramachandra Guha.

Nehru, primeiro-ministro durante 17 anos, morreu em 1964 sem indicar sucessor. O Congresso escolheu Lal Shastri, que pouco tempo viveu. Em 1966, a dividida direcção do Congresso designa a filha de Nehru, Indira Gandhi, não pela sua experiência política mas para servir, pelo nome, de bandeira unificadora. Nunca passou pela cabeça de Nehru criar uma dinastia, garantem os seus biógrafos. Ao contrário do pai, Indira não hesitará em o fazer.

Durante o estado de emergência, em 1975-77, nomeia o filho mais novo, Sanjay, secretário-geral do partido. Era o herdeiro. Sanjay morre num acidente de avião em 1980. Indira imediatamente chama o filho mais velho, Rajiv, piloto de aviação, casado com uma italiana, Sonia Gandhi.

Indira é assassinada a 31 de Outubro de 1984 por dois dos seus guardas sikhs. Vinte minutos depois do anúncio oficial da morte, Rajiv toma posse como primeiro-ministro. Nas eleições de Dezembro seguinte, sob o efeito da comoção, Rajiv obtém uma vitória arrasadora: 49% dos votos e 414 mandatos na câmara baixa. A sua cunhada Maneka, viúva de Sanjay, concorreu contra ele no círculo familiar de Amethi, no Uttar Pradesh. Nunca perdoou ter sido marginalizada por Indira e hoje, o seu filho, Varun Ghandi, é um alto dirigente do BJP.

O Congresso perde as eleições de 1989. O novo governo pouco dura e Rajiv está prestes a vencer as de 1991: é assassinado por uma terrorista tamil, do Sri Lanka, num atentado suicida. O Congresso pede a Sonia que assuma a chefia do Governo. Ela recusa mas passa a ser a sede do poder no partido. Indica o nome de P. V. Narasimha Rao. O Congresso perde as eleições de 1996 para o BJP. Em 1999, Sonia é eleita deputada e passa a ser a líder da oposição. Leva o Congresso à vitória em 2004, mas recusa ser primeira-ministra perante os ataques do BJP, que a acusa de ser italiana. Designa Manmohan Singh. Em 2013, nomeou o filho, Rahul, 43 anos, vice-presidente do partido e coordenador da campanha — ou seja, pré-candidato a primeiro-ministro. Muitos congressistas eram favoráveis à escolha da filha, Priyanka, carismática oradora.

Kamal Nath, um antigo ministro do Congresso, homenageia a dinastia: “O povo comum compreende quanto [os Gandhi] se sacrificaram pela nação. Foram assassinados, mataram-se a trabalhar pela Índia, tendo no coração apenas o melhor interesse dos cidadãos.”

E agora?

Sonia e Rahul ofereceram a sua demissão, mas a direcção do Congresso não a aceitou. Cabe aos Gandhi assegurar a unidade do partido após a derrota e evitar a debandada. Rahul mostrou-se um péssimo candidato e um político sem ideias. Na quinta-feira, numa entrevista ao Indian Express, uma das jovens “estrelas” do partido, o ex-ministro Milind Deora, lançou o primeiro ataque público à direcção. Acusou os conselheiros de Rahul de terem perdido o contacto com a realidade e “não terem dado ouvidos ao terreno”. A responsabilidade não é apenas dos conselheiros: “As pessoas aconselhadas também devem partilhar essa responsabilidade.” Agora, na oposição, “o partido tem de decidir se quer tornar-se uma ONG ou uma organização política”. Exige a abertura de um debate político geral.

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Se Indira criou uma dinastia e atribuiu à família Gandhi o direito natural de governar, tanto Rajiv como Sonia ou Rahul foram “herdeiros relutantes”, levados a assumir responsabilidades políticas como um dever perante o clã e um partido habituado a ter como bandeira a “marca Nehru-Gandhi”. Mas a dinastia está politicamente acabada.

“A única via para um renascimento do Congresso passa pelo apagamento — ou até pela extinção — do papel da Família”, conclui Guha. “A nobre, e por vezes ignóbil, ‘famosa estrutura’ erguida por Motilal Nehru e seus descendentes está reduzida a um monte de destroços.”

Ao contrário, embora também destroçado e reduzido a 19,3% dos votos, o Congresso é o único partido nacional que, pela sua implantação e pela sua história, poderá desafiar o BJP quando este der sinais de desgaste. Modi ganhou as eleições em nome da economia, com um programa nacionalista e neoliberal. Frisam os analistas que, a prazo, o seu programa tenderá a criar conflitos com as minorias e a alargar as desigualdades sociais. Mas, de momento, parece em “estado de graça”. O Congresso está condenado a fazer uma longa “cura de oposição” até actualizar as ideias, mudar dirigentes e esperar pela quebra da popularidade de Modi. Continua a representar, perante a ameaça do nacionalismo hindu, “a outra alma da Índia”.

Se Modi vier a ser o “Thatcher indiano”, o Congresso precisará de alguns anos para encontrar o seu Tony Blair.     

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