Godzilla, o monstro faz 60 anos
São poucas as personagens de cinema que chegam aos 60 anos quase sem rugas. Mas o lifting americano de Godzilla, a criatura pré-histórica que se tornou um dos símbolos da cultura pop japonesa, decidiu que em monstro que ganha não se mexe.
“Godzilla é como uma nova versão de uma velha canção de êxito”, diz por email à Revista 2 o crítico americano Rumsey Taylor. Que o mesmo é dizer: uma referência de que nos recordamos desde sempre, que pode ser reinventada consoante o momento, como uma canção clássica reapropriada por uma nova geração.
Sessenta anos depois da sua primeira aparição nos ecrãs do Japão, Gojira, a “força da natureza” que representava o poder atómico desencadeado pelos bombardeamentos de Hiroxima e Nagasáqui, recebe finalmente o lifting ocidental há muito desejado, com o objectivo de o tornar o ícone global que (parecendo que não...) nunca chegou a ser. E um lifting que, em rigor, faz um regresso às origens da sua criação como metáfora dos perigos e das preocupações sociais do seu tempo, tema recorrente no cinema fantástico.
Hoje, já não é o poder atómico que propulsiona a história, mas sim a sobreexploração dos recursos naturais e as mudanças climáticas; em ambos os casos, mantém-se a questão central — a arrogância do homem em julgar que pode controlar a natureza. Godzilla aqui está para dizer que não senhor, não pode.
Era, de algum modo, essa a sua função quando a personagem foi criada em 1953 pelos estúdios japoneses Toho. A sua inspiração vinha dos testes nucleares americanos no oceano Pacífico e, sobretudo, da contaminação radioactiva dos tripulantes de um barco de pesca japonês apanhados inadvertidamente na zona de impacto de um deles. Mas surgia também da tentativa de emular o êxito de O Monstro dos Tempos Perdidos (1953) de Eugene Lourié (cujos efeitos especiais haviam estado a cargo do mestre Ray Harryhausen), no qual uma criatura pré-histórica era libertada da sua hibernação nos gelos árcticos por uma experiência nuclear.
Num país ainda traumatizado pelos horrores sofridos durante a II Guerra Mundial, Gojira/O Monstro do Oceano Pacífico era a catarse da derrota, o terror desencadeado sem consciência das suas consequências. A destruição de Tóquio no final do filme tinha sido concebida pelo realizador Ishiro Honda como uma referência directa a Hiroxima. Mas este réptil anfíbio já então era uma figura ambígua, como o seu nome japonês — uma contracção dos termos nipónicos para “gorila” (“gorira”) e “baleia” (“kujira”) — o sugeria. Godzilla era o poder indestrutível da natureza a recordar que os humanos eram apenas uma entre muitas espécies que partilhavam o planeta e que há zonas onde mais vale não entrar — se o deixarem em paz, ele deixar-vos-á em paz.
O problema, claro, é que os humanos, infinitamente curiosos e ambiciosos, não são capazes disso. A ambiguidade de Godzilla, ajudada pela dimensão anímica do xintoísmo, da ideia de que a vida é regulada por forças vivas que atravessam toda a existência, estava precisamente nessa impossibilidade de o catalogar como amigo ou inimigo: era, apenas, mais uma força da natureza.
O público japonês também não quis que Godzilla ficasse por aquele único filme, muito embora as reacções críticas iniciais tenham sido negativas. Houve quem acusasse Ishiro Honda de estarem a aproveitar-se cinicamente de uma tragédia, mas o sucesso exigiu uma sequela — a primeira de 27 produzidas ao longo de 50 anos pelos estúdios Toho. Foram estas 27 sequelas, divididas em três “séries” diferentes, a popularizar progressivamente a personagem fora do Japão, mas de um modo que já pouco tinha que ver com a intenção catártica do filme original. antes com uma linha de montagem de exotismo trash, com um quase-dinossáurio a combater monstros progressivamente mais fantásticos em cidades de papelão construídas em estúdio.
Quando, em 2004, um pequeno distribuidor americano estreou pela primeira vez nos EUA a versão original japonesa de 1954, um público mais alargado percebeu que a matriz da série pouco tinha que ver com a ideia que o Ocidente dela fazia. Esse filme estreara fora do Japão como Godzilla, King of the Monsters, numa versão mutilada e remontada que retirava todo o subtexto metafórico para o tornar um mero filme de monstros, e introduzia uma personagem ocidental, um repórter interpretado pelo actor Raymond Burr, para servir de “tradutor” para o espectador.
De Godzilla, King of the Monsters para a frente, o que o Ocidente havia visto eram “versões bastardas” dos originais, dobradas em inglês, despachadas para os cinemas de bairro ou para as madrugadas das televisões locais, até, com o advento do DVD e da Internet, as versões originais começarem a circular junto dos apreciadores. Talvez por isso, a relevância internacional da série se tenha limitado durante muito tempo ao pequeno culto. Rumsey Taylor escreve no site Not Coming to a Theater Near You, que em 2013 publicou um especial sobre os filmes japoneses da personagem. Para ele, a ressonância ocidental da personagem é a de meros “artefactos trash”, porque as dobragens e remontagens faziam com que a dimensão caucionária se “perdesse na tradução”, enquanto no Japão a “manifestação antropomórfica da ameaça nuclear” se mantinha muito presente. “Se perguntar às pessoas, o grau de reconhecimento da personagem é grande, mas à excepção do primeiro ninguém é capaz de citar um filme de Godzilla...”
E há que lembrar que, mesmo no Japão, a potência da personagem se foi diluindo ao longo dos anos, primeiro com os 17 filmes do “ciclo Showa”, rodados até 1975, depois com os sete do “ciclo Heisei”, produzidos entre 1984 e 1995. Os filmes do ciclo Showa constituíam uma sequência iniciada com o Gojira original de 1954, mas tornaram-se progressivamente mais descartáveis, ancorados nos extravagantes combates entre monstros; uma espécie de cartoon de imagem real interpretado por um homem vestido com um fato de borracha (tão quente que era preciso interromper as filmagens todos os cinco minutos para o duplo não desmaiar com o calor).
A ironia é que foi precisamente por Godzilla não ser um homem dentro de um fato de borracha que a primeira tentativa americana de exportar o monstro falhou. Em 1998, o alemão Roland Emmerich, propulsionado pelo sucesso de O Dia da Independência (1996), assinou uma versão de grande orçamento, que os fãs assassinaram por uma razão simples: Godzilla parecia um clone dos velociraptores do Parque Jurássico de Steven Spielberg, que decidia pôr ovos no Madison Square Garden nova-iorquino.
Gareth Edwards, o realizador britânico encarregue da nova tentativa americana, disse agora nas suas muitas entrevistas que o princípio definidor da aparência de Godzilla no seu filme era “parecer-se o mais possível com o homem no fato de borracha.” E Edwards passou um ano inteiro a afinar o visual high-tech digital para que o seu monstro se parecesse com o “original improvisado” de 1954. A ideia original de Eiji Tsuburaya, o responsável dos efeitos visuais, era que Godzilla fosse uma miniatura animada fotograma a fotograma — mas o método era tão dispendioso e lento que se preferiu vestir um duplo (Haruo Nakajima, que “interpretou” a criatura durante 20 anos) com um fato de borracha.
A reacção negativa à incursão internacional de Emmerich acabaria por afectar a própria produção dos estúdios Toho, que relançou a personagem em 1999 para um terceiro ciclo que durou até 2004, ano do 50.º aniversário da personagem. Após a estreia de Godzilla: Final Wars, a Toho anunciou que ia “reformar” o seu monstro durante pelo menos dez anos.
Reflectindo não apenas os tempos que mudam e as exigências cada vez mais sofisticadas de um público habituado a efeitos especiais foto-realistas, mas também o facto de Godzilla já não despertar o mesmo interesse de outrora. Para já, a Toho decidiu dar luz verde a uma nova iteração ocidental da personagem, procurada avidamente pelo produtor independente Thomas Tull, cujo fundo de financiamento Legendary esteve envolvido nos filmes de Batman assinados por Christopher Nolan. O caderno de encargos de Tull e de Gareth Edwards era ser fiel à personagem e ao culto que ela foi criando e fazer um filme que ressoasse simultaneamente com os puristas para quem Godzilla era uma força da natureza, os espectadores ocidentais para quem não passava de um monstro de série B e os espectadores orientais para quem fazia parte da sua memória cultural.
Obviamente, esta refundação “toca a todos” em nada difere das políticas de produção que têm visto sucessivas recriações de super-heróis ao longo dos anos. Como explica Rumsey Taylor, trata-se mesmo de uma regra basilar para conquistar novos públicos. “As audiências vão envelhecendo e os mesmos filmes podem ser refeitos uma e outra vez para conquistar novas audiências — relançar o franchise para um público mais jovem.” Daí que, por exemplo, a Columbia, depois do êxito obtido pelo Homem-Aranha interpretado por Tobey Maguire e dirigido por Sam Raimi, tenha “reposto o contador a zero” para uma nova iteração, com Andrew Garfield no papel principal.
Mas a dimensão “exótica” que a cultura pop japonesa continua, bem ou mal, a ter no Ocidente dá a Godzilla uma mais-valia que a Warner está agora a explorar ao máximo no seu marketing. E não é minimamente por acaso que o Godzilla ocidental de 2014 se ancora tão abertamente no filme de 1954: por exemplo, o cientista que segue de perto os acontecimentos (interpretado pelo actor japonês Ken Watanabe) chama-se Serizawa, tal como um dos cientistas do original de Ishiro Honda. Este Godzilla retoma a noção de força da natureza libertada pelo homem, com cenas que ora evocam o 11 de Setembro, ora a catástrofe de Fukushima, ora o tsunami que afectou a Tailândia e a Indonésia em 2006 — tudo comparações das quais Gareth Edwards está ciente e que assume sem problemas. O cinema fantástico, afinal, sempre se alimentou do momento em que é concebido, reflectindo o que anda no ar, mesmo quando a intenção primordial é fazer dinheiro.
O novo filme, no primeiro fim-de-semana em exibição, já somou 196 milhões de dólares (143 milhões de euros) em receitas por todo o mundo, e a sequela parece estar garantida. Para um monstro que começou há 60 anos com um homem a sufocar num fato de borracha a destruir uma maquete de papelão, Godzilla ainda deve estar aí para as curvas.