Walter Alvarez: Ciência moderna nasceu com os Descobrimentos portugueses, antes de Copérnico e Galileu
O geólogo, que em 1980 revolucionou a ciência ao descobrir que os dinossauros tinham sido extintos pelo impacto de um asteróide, acredita hoje que a ciência moderna nasceu em Portugal. Na conferência que dá esta quinta-feira à tarde no Porto, na Fundação de Serralves, explica porquê.
Professor na Universidade de Berkeley, na Califórnia, onde ensina Grande História, uma nova abordagem que procura quebrar barreiras disciplinares e propor uma narrativa coerente de todo o passado do planeta e do Universo, Walter Alvarez (deve o apelido espanhol aos seus antepassados asturianos) vai tentar demonstrar hoje em Serralves por que é que acredita que a ciência moderna nasceu em Portugal, com os Descobrimentos, e não com Copérnico ou Galileu, como geralmente se aceita. Nesta entrevista, avança alguns argumentos.
O título da conferência que vai apresentar em Serralves é O Estudo da Grande História – Supercontinentes, e como Portugal Inventou a Ciência. Presumo que a última parte se refira aos Descobrimentos, mas acha mesmo que marcam o início da ciência ou está a forçar o argumento para ser simpático?
Normalmente, as pessoas acham que a ciência moderna começou com Copérnico e Galileu, com Kepler e Newton. O cientista português Henrique Leitão e eu temos trabalhado juntos a partir da ideia de que talvez Portugal tenha sido o lugar onde a ciência moderna se iniciou. Escrevi com o Henrique – ele é um historiador da ciência, mas também um físico – um artigo razoavelmente extenso a defender essa perspectiva.
Uma hipótese séria, portanto?
Absolutamente. Não estou a brincar. Quer que o convença?
Faça o favor.
Numa revolução científica, e acho que os Descobrimentos foram uma genuína revolução científica, o que acontece é que alguns conceitos antigos se mostram errados e entra em cena um novo conceito. Darwin fez isso ao perceber que as espécies se formam por selecção natural, e Einstein também o fez, mostrando que Newton só tinha razão parcial e que a sua teoria não funciona quando lidamos com objectos que se movem mesmo muito depressa. No meu campo, o da geologia, tivemos duas revoluções científicas nos últimos 30 ou 40 anos. Com a tectónica de placas provou-se que os continentes se movem, e isso leva-nos aos tais supercontinentes de que falarei na conferência: agora os continentes estão aqui e ali, mas há 200 milhões de anos, o que até nem é assim tanto tempo, estavam todos juntos num supercontinente…
…mas voltando aos Descobrimentos, que conceitos é que as expedições atlânticas vieram pôr em causa ?
Numa revolução científica, as ideiam mudam, e foi isso o que aconteceu em Portugal nos séculos XV e XVI. Antes dos navegadores portugueses, os europeus recuavam a Cláudio Ptolomeu e pensavam que o Oceano Índico era completamente fechado, como um lago enorme, ao qual não se podia chegar navegando. Os portugueses mostraram que era possível atingi-lo por mar contornando a costa africana. Ou seja, todos os mapas baseados em Ptolomeu estavam simplesmente errados. Como geólogo, interessa-me a Terra, e isto era uma grande descoberta acerca da Terra.
Numa revolução científica também se desenvolvem novos instrumentos e técnicas, e foi o que os portugueses fizeram, com as caravelas e outros barcos, ou com a invenção do astrolábio. E quer outro argumento? Todas as ciências têm uma base matemática forte, e no tempo dos Descobrimentos existiu um grande matemático, Pedro Nunes. Temos cartas de matemáticos ingleses da época que dizem que ele é o maior matemático vivo. O que Nunes fez foi calcular como se pode navegar no mar alto, no Atlântico. No Mediterrâneo era fácil, ninguém se perdia. Só Ulisses é que andou lá perdido uns 20 anos...
Há pouco dizia que viveu duas revoluções científicas na geologia…
Tive essa felicidade. A primeira foi a tectónica de placas, a outra teve a ver com impactos e extinções em massa. O que acontece numa revolução científica é que é tudo tão emocionante que mal se consegue suportar a excitação. As pessoas aprendem coisas novas e não conseguem esperar para partilhar o que descobriram. Há uma atmosfera eléctrica nos encontros científicos. Henrique Leitão convenceu-me de que foi isso que aconteceu em Portugal durante os Descobrimentos. Estive nos Jerónimos e vi aqueles extraordinários motivos decorativos, com animais, pássaros, cordas, esferas armilares. Deve ter sido tudo tão emocionante, sobretudo depois de uma Idade Média em que as coisas mudaram pouco e devagar. Estou convencido de que foi mesmo uma revolução científica, e como geólogo gosto de pensar que foi uma revolução geológica que inaugurou a ciência.
No seu caso, a expressão “vivi duas revoluções científicas” é um modo bastante modesto de pôr as coisas, tendo em conta a sua intervenção directa na segunda, a que trouxe uma nova explicação para a extinção dos dinossauros.
O ensaio em que eu e o meu pai [o físico Luis Walter Alvarez (1911-1988), prémio Nobel em 1968] avançamos a hipótese de que o impacto de um asteróide provocara uma extinção em massa saiu em 1980. Os geólogos estavam convencidos de que tudo o que se passara na história do planeta decorrera devagar e gradualmente. A ideia de que o impacto de um asteróide podia ter morto os dinossauros e extinguido muitas outras espécies de animais e de plantas era um anátema. Não gostavam mesmo nada dessa ideia e, na época, criticaram-me bastante severamente.
Admite que, para lá da controvérsia propriamente científica, possa ter havido uma espécie de relutância psicológica em aceitar que uma catástrofe dessas dimensões pudesse ter ocorrido? E que, consequentemente, poderia voltar a acontecer?
Pode bem ser que tenha alguma razão. O homem que convenceu os geólogos de que todas as mudanças tinham sido lentas e graduais foi um inglês chamado Charles Lyell, que escreveu o seu livro [
Principles of Geology] por volta de 1830. É verdade que a maior parte das mudanças é lenta e gradual, mas ele afirmava que nada de catastrófico alguma vez ocorrera. Pensei muitas vezes que, sendo ele um inglês de classe alta a viver nos tempos da Revolução Francesa, não lhe deveria agradar muito a ideia de mudanças bruscas e de catástrofes. Mas Lyell não era só um geólogo, era também um advogado, e por isso era muito bom a convencer as pessoas.
Um momento decisivo no processo que levou à sua descoberta foi a constatação, quando estudava formações rochosas em Itália, de que havia uma presença invulgar de irídio – um metal raro que costuma encontrar-se em meteoritos – num estrato argiloso que dataria mais ou menos de há 66 milhões de anos. Passar da anomalia na concentração de irídio para a teoria de que um asteróide extinguira os dinossauros não foi um salto um bocado ambicioso, ainda que lógico?
Talvez pense que a ciência é muito lógica, mas a verdade é que andamos aos tropeções, procurando respostas que ninguém ainda deu. Mesmo após a descoberta do que se passava com o irídio, estivemos um ano inteiro a colocar diferentes hipóteses até chegarmos à ideia do asteróide.
E quando descobriram a concentração anómala de irídio, já andavam a pensar na extinção dos dinossauros?
Sim. Tínhamos estado a trabalhar nessas rochas em Itália, analisando camada sobre camada sobre camada. Eram depósitos marinhos e não tinham dinossauros, mas tinham micro-organismos fossilizados que surgiam em todas as camadas e que, de repente, desapareciam de forma brusca. Escapavam alguns mais pequenos, mas os grandes desapareciam todos: era quase uma extinção em massa.
O passo seguinte foi constatar que esses micro-organismos e os dinossauros tinham sido extintos no mesmo período?
Sabíamos que o período era pelo menos aproximadamente o mesmo, e fazia sentido que duas extinções súbitas ocorridas simultaneamente tivessem sido provocadas por um único acontecimento.
Mas teve de esperar uma década até se descobrir em 1991, no golfo do México, a cratera submersa que testemunhava o impacto desse asteróide cujo embate deduzira. Presumo que se tenha sentido satisfeito quando a encontraram.
Nem imagina como foi emocionante, apesar de nessa altura a teoria já ser aceite pela maior parte dos geólogos. E mesmo hoje há alguns que não acreditam nela, mas são poucos.
Há quem defenda que a extinção em massa pode ter-se ficado a dever à conjugação do impacto do asteróide com uma fase de actividade vulcânica particularmente intensa.
É uma hipótese que não afasto inteiramente, só discordo dos que pretendem que o impacto do asteróide não teve nada a ver com a extinção.
Crê-se que essa extinção, a que os cientistas chamam extinção do Cretáceo-Paleógeno (K-Pg), antes conhecida como extinção do Cretáceo-Terciário (K-T), terá eliminado cerca de três quartos de todas as espécies então existentes. Sabe-se por que motivo escaparam as restantes? E o que fez dos dinossauros vítimas ideais?
Sabemos pouco sobre isso. O impacto do asteróide deve ter provocado muitos distúrbios ambientais, e até temos provas de que alguns deles ocorreram. Mas não podemos afirmar que esta espécie morreu por causa do frio e da escuridão e que aquela se extinguiu pelo fogo, ou algo assim. Não há provas. De resto, como se pensa que as aves descendem dos dinossauros, nesse sentido os dinossauros não se extinguiram.
Ensina Grande História (Big History) e é um dos cientistas que mais têm contribuído para divulgar esta nova disciplina. Quer resumir o que é a Grande História e quais são as principais vantagens da abordagem que ela propõe?
No mundo académico, as disciplinas estão muito separadas umas das outras: as pessoas dos departamentos de paleontologia e astronomia não têm nada a dizer umas às outras, e as que estudam a história da espécie humana não têm nada a dizer nem a umas nem a outras. Achámos que era uma pena e foi assim que surgiu a ideia da Grande História, cujo objectivo é pensar tudo o que aconteceu no passado, desde o início do tempo, e criar uma história coerente, quebrando barreiras entre disciplinas.