Ode a um doleiro

O ano era 1948. Joaquim Castro, filho de Manoel Castro, 22 anos de idade:

– Pai, vou abrir um escritório de câmbio.

– O que é isso, meu filho?

– É onde se compra dólar, papai.

– E as nossas lojas de lavanderia não são suficientes, meu filho?

– Pai, viemos pro Brasil em 1932. O senhor estava certo naquela época. Mas lavanderia não me interessa… O Giuseppe, aquele amigo italiano, está fazendo isso e está muito bem.

– Mas isso não é ilegal, filho?

– Ninguém vai pra cadeia por causa disso, pai. Sossega.

Sobrava um dinheirinho no final do mês para os lavandeiros da cidade. Eles queriam economizar em dólar. O cruzeiro não era estável, a concorrência era toda amiga. Joaquim era de confiança, eles compravam e guardavam no cofre em casa. Em 05 anos, Joaquim estava empilhado de dólares e cruzeiros. Enfiou os dólares na mala, pegou um avião e foi pra Suíça. Abriu uma conta. Giuseppe explicou que agora era diferente.

– O senhor vai querer dólar cash ou dólar cabo?

– Dólar cabo. Preciso mandar uns escudos pra minha querida irmã tão sofrida, em Faiões.

O ano era 1955. Juscelino Kubitschek era o Presidente do Brasil e estava construindo a nova capital.

Em 1965, o Brasil registrou 114.000 carros novos. A população já estava em quase 90 milhões. Os donos de botequim tornaram-se proprietários de suntuosos restaurantes. Sobrava dinheiro; entraram em construção. Continuou sobrando dinheiro. O jovem engenheiro judeu, que era sócio do construtor português, alertou:

– Porque você não abre uma conta na Suíça?

– E como faço isso? É proibido! Como levo esse dinheiro?

– Vai pra Suíça e abre a conta. Ou aqui mesmo no Rio –  eles tem escritório com fachada de consultoria.

– E como mando o dinheiro?

– O Castro, teu conterrâneo, faz.

 O construtor português estava ganhando um extra (e que extra), vendendo caminhões de areia para aterrar as praias de Botafogo e Flamengo, construindo um dos parques mais bonitos do mundo. A “boquinha” ele conseguiu com um amigo de infância, o Sebastião Serra, que era secretário de obras e estava lidando com a verba para o Aterro. Sebastião andava de Cadillac e tinha um apartamento muito bonito na praia de Ipanema.

– Tião, você tem conta lá fora?

– Não, mas... dá pra fazer isso?

– Claro que dá. Aqui é que não dá pra ter dólares, né, tião? Acorda!

É 1965, e ainda é proibido conta em dólares no Brasil, apesar da oscilação da moeda local.

Sebastião Serra era do partido que estava no poder – o partido dos militares. E apresentou a Joaquim outros amigos.

Em 1975, o nosso doleiro Castro servia importadores, exportadores, traders, construtores, ministros da junta militar. O Brasil registrou 661.332 carros novos e a população era de 100 milhões. Joaquim aproveitou uma pequena barganha e comprou um terreno no Leblon para construir para si um pequeno edifício de 04 andares numa rua discreta – com outros três bons amigos e/ou clientes de anos de trabalho conjunto. Castro agora era uma agência de turismo e viagens, bastante conhecida. No segundo andar, funcionava um escritório fechado.

Já estamos em 1985. Cai o pano para joalheiros e outros, por conta da violência. Começa a diáspora rumo a Miami ou Portugal  ou Espanha. Pra Israel, só vai judeu pobre. Sobem os impérios das confecções. O filho do Castro, Bruno, está fazendo novos contatos na Faculdade de Economia: gente graúda, gente de cima. Filhos de pessoas que sempre estiveram lá em cima – três ou quatro ou cinco gerações. A inflação é “weimarina”. “... Papai disse que pra lavar um guardanapo de pano em lavanderia industrial estão cobrando o preço de um cafezinho.” O preço do cafezinho é o indexador. Registraram-se  602.069  carros novos no Brasil e a população era de 130 milhões.

Em 1990, veio um novo presidente. Na sexta-feira, antes de assumir, decretou feriado bancário e confiscou o dinheiro de todo mundo por 18 meses. Na segunda-feira não havia moeda nacional em cash. Graças a Bruninho e seus contatos, Joaquim reservou US$2 milhões em moeda local. Uma aposta perigosíssima. Ganharam 04 vezes mais em 03 dias de trabalho. Bruno era filho de Joaquim.

Ainda em 1990, o corretor de seguros veio auxiliar Castro na proteção do dinheiro que circulava na rua, tanto quanto o dinheiro parado no escritório. O seguro era em dólares, só podia ser feito no exterior, porque o monopólio do Governo impedia qualquer seguro no exterior e, obviamente, qualquer seguro em dólares.

– Sr. Castro, para avaliar o risco, preciso perguntar: quanto o senhor movimenta por ano?

– US$1 bilhão de dólares.

O corretor gaguejou. Castro, já tão desacostumado, perguntou:

– É pouco?

Agora já era permitido o câmbio para quem viajasse para o exterior, mas era limitado e longe de cobrir as operações. Para garantir um certo sossego, o delegado da Polícia Federal mantinha tudo sob controle para o Castro, pela módica quantia de US$100 mil dólares ao mês. O Castro depositava pro delegado lá na conta mesmo. Bruno, agora, foi “requisitado” de abrir um banco. O movimento já não se abrigava numa humilde agência de turismo.

Em 1994, ninguém mais precisava de dólares. O pré-governo de Fernando Henrique deu um choque de reajuste de 270% em dólares em um só dia. Nasceu o real. Os velhos comerciantes, amigos de Joaquim, construtores, confecções, joalheiros, médias siderurgias, sumiram do dia-a-dia de compras. Não sobrava pra mandar – na verdade estavam sendo expulsos dos bancos suíços por terem contas muito baixas. Como clientela restaram os fiscais, os políticos, amigos no banco central e outros do alto escalão do funcionalismo público.

Os megaempresários agora já eram inc. No exterior. Suas movimentações estavam protegidas por lei. Não precisam de Bruno para mandarem o que sobra.

Em 1998 não há um só médio e grande empresário que não dependa do cash disponível de Bruno. Ele é sócio de todos, no Brasil inteiro. Nenhum negócio é rentável, mas ter cash disponível entre empresários brasileiros passa a ser commodity rara. Em 1999, uma desvalorização de 40% no real oferece confisco legalizado do real aos bancos. O pequeno poupador perde 40% de suas economias em uma só tacada. Neste ano, os bancos declaram o maior de seus lucros em sua série histórica. O Brasil registrou 898.584 carros novos  e a população era de 169 milhões.

É 2010. Notas fiscais são obrigatoriamente produzidas online, diretamente na receita federal: ninguém vacila nem pode vacilar.O preço para lavar um guardanapo de pano para restaurante é R$0,15. O preço do cafezinho é R$,.00. O filho do fiscal, também fiscal, só compra apartamento se o papai trouxer dinheiro de fora. O filho não fatura mais como o pai. Não tem mais de quem tirar. Bruno já não pode mais trabalhar com ninguém. O Governo tem seus próprios doleiros, que são “queimados em jornal”, de acordo com a conveniência. É mais seguro.

Bruno, pela bondade de um jogador de futebol internacional, pega um jatinho particular e vão os dois visitar a Rússia. O presidente e os vices, todos, sem exceção, ganham bolas de futebol autografadas pelo jogador.

Em 2012, quase dois milhões e meio de veículos novos foram registrados no Brasil. A população? 200 milhões. Descobrimos o financiamento de carros. Ainda há monopólio estatal em resseguros, o pequeno poupador não pode abrir conta em dólares no Brasil e existe um limite em cash (dólares) para compras no exterior. Não faz mal. Não tem dinheiro circulando mesmo. Não trago dados sobre inadimplência no financiamento. Vai entediar meu leitor.

O gap entre ricos e pobres aumentou no mundo inteiro. A convergência  do dinheiro para poucas mãos é universal. Este dinheiro não produz, porque produzir é arriscado. O Brasil confirma esta tendência.

Para onde vai o Brasil? Para onde vai o Brasil? Para onde vai o Brasil? Rima com… deixa pra lá.

Jornalista (residente em Londres)

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