Cinema Londres: sem cadeiras ou ecrã… sem Noronha da Costa e João Cutileiro
Sabe-se que a Socorama declarou insolvência e que os cinemas fecharam por todo o país. Sabe-se que o Cinema Londres, em Lisboa, poderá ter outro fim para além da exibição cinematográfica. Mas há algo que não se sabe: se os olhares irão voltar a pousar nas obras de arte que faziam parte da decoração do Londres - a pintura de Noronha da Costa e a escultura de João Cutileiro
“Há aquelas figuras que pairam no espaço, dando uma vaga ideia de tridimensionalidade, e depois aqueles bocados densos de betume”, diz Noronha da Costa sobre a sua pintura, inspirada no barroco alemão, e que foi vista por milhares ao longo dos anos à entrada do Cinema Londres. Obra “Sem título” ou apenas “Pintura”, data de 1971 e esteve no Londres desde “a inauguração do cinema”, em 1972. Nuno Faria, co-comissário com Miguel Wandschneider da exposição “Noronha da Costa Revisitado” de 2003 no Centro Cultural de Belém (CCB), diz ao PÚBLICO que esta é uma obra relevante “na produção de Luís Noronha da Costa num período em que era um dos pintores mais importantes” no panorama nacional.
Actualmente, esta tela de grande dimensão, 2,50 por 3,50 metros, é propriedade da Socorama mas já não está no histórico Cinema Londres, a conhecida “sala-estúdio” com as cadeiras que se afundavam e que, para muitos, eram as mais confortáveis de Lisboa. Nuno Faria diz ainda que esta “é uma pintura importante no conjunto da obra de Luís Noronha da Costa dos anos 70, é histórica e terá um valor considerável”.
Noronha da Costa conta com uma linguagem cinematográfica na sua obra e esta pintura não é excepção. José Gil, um dos autores dos textos publicados no catálogo da exposição no CCB, escreve que “o ecrã, que vela e desvela ao mesmo tempo, dissimula e abre o olhar a uma outra ‘percepção’ da imagem, condensa em si a presença e a ausência, o real e o virtual”, leva a concluir que “o ecrã presta-se particularmente bem ao aprofundamento das preocupações estético-filosóficas do pintor”.
Neste catálogo, está uma fotografia da pintura que se encontrava no Londres e onde se vê uma espécie de véu que Noronha da Costa diz ser conseguido com a ajuda do betume. Por trás deste, os vultos “obrigam a uma maior interpretação das figuras no espaço”, diz o pintor. Mas, ainda assim, permite imaginar... tal como acontece com o cinema.
Com o encerramento do Londres em Fevereiro de 2013 e com a retirada do seu recheio, questiona-se sobre qual o paradeiro e qual o estado de conservação destas duas obras de arte.
João Cutileiro não entra em detalhes sobre as influências na sua escultura. No entanto, diz ao PÚBLICO que a peça realizada para o cinema no início da década de 80 do século XX foi uma encomenda dos filmes Castello Lopes, onde lhe foi atribuído um tema. Esta escultura de parede com cerca de 5 por 2,5 metros, feita de ardósia e de mármore de diversas cores, ilustra o episódio da mitologia grega onde Prometeu rouba o fogo a Zeus para depois o dar à Humanidade.
“Foi há muito pouco tempo” que Cutileiro refere ter sabido da retirada da sua obra do Londres e quando questionado sobre qual gostaria que fosse o destino desta escultura, a sua resposta é clara: “Bom, eu não gostaria que fosse partida”.
Questionado pelo PÚBLICO sobre a tela de Noronha da Costa, o administrador da Socorama, João Paulo Abreu, fala no plural: as obras de arte “são propriedade da empresa” e, tratando-se de informações que classifica como “confidenciais”, não avança sobre qual o futuro que lhes será dado. No entanto, diz que a pintura de Noronha da Costa foi salvaguardada após o encerramento do espaço, sendo que “quando o quadro foi transferido, foi devidamente embalado e assim se encontra”.
O PÚBLICO pediu para ver a obra mas tal não foi aceite.
Perante a situação financeira da Socorama, que se debate com um processo de insolvência, Noronha da Costa deixa algumas sugestões para o futuro da pintura, “feita com muito entusiasmo” e adquirida por Gérard Castello-Lopes, um dos fundadores do Londres e conhecido fotógrafo: “Gostava que a oferecessem - ou vendessem - a um museu. O Museu do Chiado ou à Gulbenkian”, adianta. O Centro de Arte Manuel de Brito, que acolheu, desde Setembro de 2013 até Março deste ano, a exposição “Luís Noronha da Costa”, é também uma das opções que refere. Nuno Faria, comissário da exposição no CCB, vê esta obra como “património cultural” e relembra que “o importante é que não seja destruída para que possa ser vista”.
Quando questionado sobre a possibilidade da pintura ir para um museu, João Paulo Abreu relembra o processo de insolvência da Socorama e diz que “isso terá de ser apreciado pela assembleia de credores”.
Noronha da Costa receia pelo futuro da obra. “Custa-me saber que poderia [o quadro] ir para um canto, ou que era rasgado ou que pintavam por cima que tem sido, em geral, o que acontece à minha obra”, diz.
Por enquanto, esse não tem sido o seu destino, pelo menos face às declarações do administrador da Socorama, que afirma que, “a obra está no estado de conservação em que se encontrava”. Quanto a “ir para um canto”, já nada está garantido pois não foi possível apurar qual será o seu destino. A mesma incerteza paira sobre a escultura de João Cutileiro. No entanto, quando questionado pelo PÚBLICO se gostaria que a sua obra regressasse ao seu poder, Cutileiro diz que não: “Fiz a peça, vendi-a e esteve bastantes anos no sítio. O proprietário fará o que bem entender”. A dúvida também se instala quando se pensa nas portas do cinema que, desde 2012, estavam decoradas com ilustrações do artista plástico Hugo Lucas.
Entre incertezas, uma coisa é certa... o Londres continua de portas encerradas e as obras de arte sem destino aparente.
Texto editado por Ana Fernandes