Uma dança que é um jogo de truques
Passo, que está esta quinta-feira em Viseu e sábado em Lisboa, está interessado em perceber como pode o movimento sobreviver em estados de emergência
O que isto quer dizer é que o trabalho desta coreógrafa italiana se alimenta de um jogo perceptivo e de intuição que sujeita o corpo a encontrar soluções para um diálogo se não mais harmonioso que seja, pelo menos, mais atento às diferenças e às expectativas que temos sobre os outros e aquilo que fazem.
Olhe-se para Passo, criação de 2010 que marca a sua estreia em Portugal e se apresenta esta quinta-feira no Teatro Viriato, em Viseu, e no sábado no Centro Cultural de Belém, em Lisboa. Aparentemente uma peça lúdica, vive contudo de uma tensão entre os limites dos movimentos e a liberdade que, dentro desses limites, os bailarinos encontram para compor uma coreografia filigrânica. Se as cabeleiras e os vestidos que todos envergam sugerem uma dimensão alegórica e quase cartoonesca, essa folia é contrariada pelo modo como os movimentos desenham (ou se sujeitam) a uma ordem e a regras invisíveis e impostas.
Ao longo dos anos o trabalho de Senatore tem-se caracterizado por uma pesquisa intensa sobre a fronteira entre a ficção e a realidade, construindo uma coreografia que, por vezes, é auto-ficcional. Passo foi, na altura da estreia, um momento de viragem no percurso desta coreógrafa formada na confluência da dança e do teatro (o seu currículo inclui encontros com criadores tão diversos como Jean Claude Gallotta, Raffaella Giordano, Georges Lavaudant e Antonio Tagliarini). Sob o manto das aparências, dizia o Le Monde na altura da estreia, Senatore “criava curto-circuitos na realidade no modo como dissecava o quotidiano para deles extrair instantes aparentemente aleatórios e, a partir deles, trabalhá-los como se fossem planos na montagem de um filme”.
"Construindo e descontruindo a imagem em movimento, distribuindo pistas que vão abrindo o jogo aos poucos, Ambra Senatore cria uma partitura da qual emana a espontaneidade e a eloquência", escreve-se no texto de apresentação de Passo. Em palco o que vamos vendo é o surgimento de uma coreografia que ensaia o desalinho, que namora com as fronteiras do caos, que olha, ambiciosamente, para o abismo. O jornal Le Monde escrevia que "o trabalho paradoxal desta coreógrafa cria sensações indefiníveis ao mesmo tempo que se guarda numa vitrina espectacularmente delicada". Espectáculo em permanente pré-aviso sísmico, Passo nunca chega realmente a explodir, precisamente porque está interessado em perceber como pode o movimento sobreviver em estados de emergência. "A sua paleta, seja gestual, sonora ou visual, é sempre ligeira, às vezes ténue, sem deixar de criar alguma comoção", descreve o jornal francês.
A chave para entender o desconforto criado por uma coreografia que parece ligeira está nos intérpretes e no jogo auto-paródico a que se sujeitam. O elenco trabalha a partir de uma coreografia que sendo eloquente e simples é também uma reflexão sobre a espontaneidade. Ou seja, é uma coreografia que trabalha em direcção à desmontagem do artifício, parodiando-o através de uma escrita que sublinha a artificialidade e a ironia para anular qualquer margem de tensão, de receio e de preconceito. O jogo coreográfico, que é também um jogo social, flirta com as ideias de questionamento individual e de pertença social.