O ofício de trabalhar

Vida Activa parte de uma experiência da realizadora, Susana Nobre, que durante alguns anos trabalhou num centro de formação profissional do programa Novas Oportunidades (entretanto extinto, certamente por más razões). Com uma câmara video montada na secretária e o acordo dos entrevistados, gravou conversas e depoimentos, autênticas “biografias profissionais” de um rol de gente que, estando agora desempregada, tinha uma vida de trabalho atrás dela. Só mais tarde, e já depois de desactivado (em 2012) o próprio centro em que trabalhou, é que Susana pegou neste material para lhe dar forma de filme, a que veio a chamar Vida Activa, título a retinir tanta justeza como uma espécie de ironia triste.


Este material gravado no cento ocupa parte essencial do filme, antes de, na parte final, a realizadora abrir para algumas cenas registadas noutro contexto, com outro tempo e outra respiração, que fazem deslizar o âmago do filme, incorporando no seu retrato laboral uma evocação do desmantelamento progressivo da indústria portuguesa a partir de casos concretos na região de Alverca (onde estava o centro em que Susana trabalhou). Apesar do interesse desta última questão, ou precisamente pelo seu interesse, isto traz problemas de estrutura a Vida Activa, que acaba quando parece estar pronto a gerar outro filme, apreensível, por exemplo, pela quantidade de material documental e iconográfico (fotos, certificados profissionais, etc) que nesse segmento final é apresentado, e que se fica com vontade de ver a respirar melhor.

Não obstante, um desses momentos ilumina um dos possíveis modos de ver Vida Activa: é quando a montagem de uma sucessão de documentos e licenças profissionais conjura à nossa frente um mundo laboral que deixou de existir, a partir da designação de uma série de profissões que ou já não existem ou já poucos saberão precisar em que consistem. Mais do que a questão do “emprego”, Vida Activa evoca a questão da profissão, do “mister”, de um conjunto de saberes específicos necessários à execução de determinada tarefa, da “técnica” como se dizia num filme de Ana Hatherly logo a seguir ao 25 de Abril. Ouve-se um cortador de carnes (“uma arte linda”) lamentar-se: já que não lhe dão emprego, podiam ao menos pô-lo a formar jovens cortadores de carnes. O porquê disso não acontecer é dado noutra conversa, por um ex-operário resignado: dantes tinha-se emprego “para a vida”, agora é para “ano e meio, dois anos”; para quê investir, portanto, se a precarização do emprego implica necessariamente a desvalorização da profissão.

Dentro dos limites que lhe apontámos acima, e sem estar à altura do melhor filme da realizadora (o metodologicamente wisemaneano O Que Pode um Rosto), merece bem a atenção que se lhe dê, pela reflexão que contém e que suscita, e pela força documental dos registos que apresenta, expostos com a inteligência e a secura necessárias para que não se lhes queime a espontaneidade e a relevância. Além do mais, é certamente um dos primeiros filmes portugueses a trazer um eco, nada abstracto, da “crise” que vai “acabar” a 17 de Maio.

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