Morreu Rui Mário Gonçalves, decano dos críticos de arte contemporânea
O crítico fundou a secção portuguesa da Associação Internacional de Críticos de Arte nos anos 60, fundamental no reconhecimento da actividade da crítica de arte em Portugal.
Nascido em Penafiel, em 1934 e irmão do pintor Eurico Gonçalves, Rui Mário Gonçalves interessou-se desde cedo pela arte, apesar de ter começado por estudar Ciências Físico-Químicas na Universidade de Lisboa. No início dos anos 60, foi para Paris como bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian, tendo estudado com Pierre Francastel. Em 1967, iniciou a sua carreira como professor no curso de formação artística na Sociedade Nacional de Belas-Artes e ensinou ainda nos anos 70 nas escolas de teatro e de cinema do Conservatório Nacional de Lisboa. Era professor catedrático jubilado da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, no Departamento de Literaturas Românicas, onde entrou em 1974.
Ainda na Faculdade de Ciências, em 1958, enquanto dirigente associativo, organizou a exposição Primeira Retrospectiva da Pintura Não-Figurativa Portuguesa, uma mostra "fundamental no momento em que foi feita, porque afirma a abstracção numa altura em ela ainda não está instalada no tecido critico português", conta Delfim Sardo, curador e crítico de arte. Além disso, acrescenta, foi importante na abertura ideológica da esquerda, tipicamente ligada à pintura figurativa do neo-realismo, à abstracção.
A importância do trabalho de Rui Mário Gonçalves está na capacidade que ele e a sua geração – José-Augusto França, Fernando de Azevedo, Pedro Vieira de Almeida - tiveram de autonomizar a crítica de arte, diz Luísa Soares de Oliveira, crítica de arte do PÚBLICO. “Dessa geração foi o que se manteve mais interessado na arte contemporânea e activo até hoje. Continuei até há pouco tempo a encontrá-lo em exposições e debates e tinha sempre algo de pertinente a dizer”, diz Luísa Soares de Oliveira.
Este trabalho de autonomização da crítica de arte tem como grande exemplo a fundação, juntamente com José-Augusto França, da secção portuguesa da Associação Internacional de Críticos de Arte (AICA), que não existia em Portugal até 1968. Na época da sua fundação, no Estado Novo, "a AICA funcionou como ponto de respiração, de ligação ao que é produzido internacionalmente”, diz Delfim Sardo, actual presidente da AICA e que destaca Rui Mário Gonçalves como um promotor da crítica séria e fundamentada, especialmente enquanto presidente da associação, entre 1971 e 1973 e entre 1998 e 2001. Em 1971, como membro da AICA, integra o júri de selecção dos artistas representados na nova decoração do café "A Brasileira" (Lisboa), juntamente com José-Augusto França, Fernando Pernes e Francisco Bronze, escolhendo nomes como António Palolo, Carlos Calvet, Eduardo Nery, Fernando Azevedo, João Hogan, João Vieira, Joaquim Rodrigo, Manuel Baptista, Nikias Skapinakis, Noronha da Costa, e Vespeira. Skapinakis, aliás, iria representar o júri na sua obra para o conhecido café do Chiado, justamente chamada Os Críticos.
Os artistas escolhidos para a nova decoração deste café são seus contemporâneos, aqueles por quem Rui Mário Gonçalves mais se interessou ao longo da sua carreira. "Continuou sempre ligado aos artistas da sua geração e isso fez com que, nos anos 80, se tenha afastado progressivamente", diz Delfim Sardo.
“Rui Mário Gonçalves é um dos críticos mais importantes da segunda metade do século XX. É a memória viva da arte produzida neste período”, diz Delfim Sardo sobre o crítico que começou a sua carreira em 1961 e recebeu o prémio Gulbenkian da Crítica da Arte, em 1963, tendo colaborado ao longo da vida com o jornal Expresso, Jornal de Letras- Artes e Ideias e Diário de Lisboa. Na sua actividade destaca-se também a participação política, assumidamente de esquerda - o que era claro nos textos que escrevia, diz Luísa Soares de Oliveira.
“Falava com ele há pouco tempo sobre as histórias que tem para contar do período anterior e que se segue ao 25 de Abril. Estava muito ligado a artistas activos politicamente e com ele há inúmeras histórias e uma memória que se perde”, diz o presidente da AICA.
“A arte é geralmente a primeira reveladora das transformações que a humanidade deseja. Não é a política. A boa política é aquela que serve os verdadeiros anseios da Humanidade, e esses verdadeiros anseios são expressos na melhor arte”, disse Rui Mário Gonçalves numa entrevista à Antena 2 em 1997.