Quando veio a Lisboa apresentar A Vida de Adèle, o cineasta tunisino Abdellatif Kechiche falou de um projecto que andava há anos na sua cabeça: um filme sobre a actriz porno Marilyn Chambers [1952-2009]. Deixou-nos com água na boca, entre outras coisas, pela forma como lê e faz completamente seu o mundo de Chambers, o da pornografia: “Há muito tempo que quero falar sobre o mundo da pornografia talvez porque os actores são fortemente marginalizados, pelo menos em França, e isso na minha adolescência não me foi indiferente – talvez porque nas salas porno só havia velhos e imigrantes, e eu olhava para esses actores como benfeitores, à margem obviamente da excitação sexual; a imigração dos anos 70 era muito dura, e eu achava que aqueles actores faziam bem aos meus.
Tinha por isso uma admiração por eles, que nada tinha a ver com o desejo sexual que poderiam eventualmente provocar. Para mim, estavam a sacrificar-se em prol dos outros...” – grupo, marginalização social, corpo sacrificial, enfim, tudo nesse projecto vibrava intensamente com os tons e as cores de Kechiche (e quando falava sobre essa primeira estrela porno a ter no ecrã uma relação sexual com um negro, actriz que faleceu no ano em que Obama chegou à Presidência americana, Kechiche enchia as suas palavras de ressonâncias simbólicas.) Mas, helàs pour nous, o próximo projecto do vencedor da Palma de Ouro de Cannes 2013 não será esse. Kechiche acaba de lançar o casting de La Blessure: procura jovens de origem magrebina, rapazes e raparigas, com idades entre os 14 e os 22 anos, noticia a revista Les Inrockuptibles. É uma adaptação do romance La Blessure, la vraie, de François Bégaudeau – o autor de Entre les Murs, cuja adaptação ao cinema valeu a Laurent Cantet a Palma de Ouro de Cannes (A Turma), em 2008, e foi um momento de estrelato quase pop para Bégaudeau, que estava em todo o lado. A acção do livro, história de iniciação de um adolescente de 15 anos, passa-se em Vendée, na costa Oeste francesa, numa semana de férias, em 1986: o herói, François, está determinado a perder a virgindade, mas as festas do 14 de Julho vão acabar mal – ferida nunca sarada no François adulto, que se lembra de si. A acção passa-se em França, a rodagem, contudo, acontecerá na Tunísia.
É um encontro – Kechiche/Bégaudeau – anunciado: o livro andaria na cabeça do cineasta há anos e em 2011 Bégaudeau, numa entrevista, explicitou o seu desejo de que Abdellatif adaptasse o romance. “Adoro Kechiche, sou fã absoluto, para mim é o maior cineasta francês vivo.” Nessa altura, quando Kéchiche já tinha realizado O Segredo de um Cuscuz (2007) e Vénus Negra (2010), Bégaudeau declarava também: “É tempo agora de ele filmar os brancos. Depois regressará aos negros e aos árabes e fará muito bem, mas para já deve filmar os brancos”. Kechiche vai situar a acção na Tunísia. Quanto ao filme “com brancos”, como notava a Les Inrocks, já o fez, A Vida de Adèle... La Blessure já nos deixa água na boca.