O carteiro chegou a Couce depois da Internet e da TV Cabo, mas ainda falta a água canalizada
Aldeia, em Valongo, já tem, finalmente, caixas de correio. Marco de correspondência foi colocado há um mês quase 500 anos depois dos CTT terem sido criados. Câmara não consegue explicar o atraso e está a "negociar com empresa chinesa" para que chegue também a água.
As primeiras cartas chegaram à aldeia de Couce, em Valongo, há um mês, quase 500 anos depois dos CTT (1520) terem sido criados. “Realmente já era altura de também nós recebermos cartas como o resto do mundo”, graceja Manuel Fernando, 51 anos, pisando a soleira da porta da pequena casa em xisto cheia por um sofá e um mesa, onde se amontam as missivas.
Já recebeu umas dez cartas, assegura. “É tudo contas. Ninguém nos escreve”, volta a gracejar o homem que não entende tão grande atraso. O carteiro havia chegado de mota há minutos.
“Mais uma conta para pagar”, diz Manuel. Está contente com aquilo a que tem dificuldades de chamar “inovação”, apesar de sorrir. Não deixa, porém, de criticar. “Sei lá bem porque nunca tivemos cartas. Os políticos nunca quiseram saber. Eles recebiam nas casas deles. Estamos para aqui esquecidos”, aponta.
Couce integra as Aldeias de Portugal, uma rede que aposta na preservação do património e na dinamização turística e económica através do contacto com a natureza. Mas turistas é algo que por lá nunca se viu. Couce conta com 15 pessoas em quatro casas. As restantes estão em ruína. E há anos que a igreja não abre portas.
Para chegar a Couce, que fica a cerca de 10 minutos do centro de Valongo, é preciso enfrentar, vindos de São Pedro da Cova, uma estrada de terra batida ondulada pelas chuvas. O estado da Rua de Couce transforma os poucos minutos da cidade, em quilómetros e anos de distância. A entrada impõe um regresso ao passado.
Ali quase nada mudou e a natureza é a personagem principal, pontuada, amiúde, por casas de xisto, pelo rio Ferreira que lhe rasga as entranhas e pela imensidão, ao longe, da serra de Santa Justa.
Quem vem de Valongo encontra um requiem natural menos bucólico. É nessa entrada que se ergue um marco com quatro caixas de correio, por baixo de uma farta laranjeira. “Temos caixas, mas não temos números de porta e nem sequer um código de postal. E a água que temos em casa é das nascentes”, lamenta Manuel Fernando, que daqui a uma semana parte para França para trabalhar na construção civil.
Há quatro anos, o anterior executivo fez obras para lá levar a água canalizada, mas os tubos ficaram à porta da aldeia. “Não se percebe”, diz Florinda Baltazar, 64 anos, que encontramos à porta de uma casa exígua guiados por “Joana”, um pequena cadela desconfiada. “Já aqui tínhamos tudo, menos cartas. Tínhamos internet, telefone, electricidade, e TV cabo. Eu até tenho duas [operadoras de] tv cabo. Tenho mais do que uma televisão”, diz orgulhosa enquanto aponta para o satélite erguido no telhado.
Florinda não consegue explicar também por que demoraram tanto a chegar as cartas ou por que ainda demora a água canalizada. Mas também não se preocupa. “O que realmente falta aqui é saúde. Vai chegando até ver”, diz o marido Manuel Moreira, 65 anos, antigo serralheiro.
Ambos operados ao coração, falam sem quase se distraírem da companhia habitual da televisão. “Só chegam contas para pagar. Olhe se não houvesse correio e se elas não chegassem. Isso é que era bom para a nossa reforma. É tão pequena, mas olhe...”, pausa Florinda franzindo os lábios.
A moradora, que até agora já recebeu 20 cartas, queixa-se agora da casa da filha “que caiu quando há uns tempos a câmara fez obras de saneamento”. Avós, filha e neto dormem por ora no mesmo pequeno quarto. Uns na cama, outros no chão.
Antes, as cartas detinham-se num café próximo. O carteiro, que agora vem a Couce à terça e à quinta-feira, deixava tudo no café Ponte Nova. “O dono é um rapaz de muita confiança. Ligava-nos sempre que vinha mais uma carta. E às vezes abria quando era alguma coisa do hospital. Outras vezes até pagava as contas e depois passávamos lá”, conta Florinda.
Era assim há pelo menos mais de 50 anos. O avô e o pai de Joaquim Rocha, 36 anos, faziam de carteiro. “Ainda há um casa que prefere vir cá buscar as cartas e o carteiro ainda as deixa no café, acredita? Mas assim é melhor. Tenho menos responsabilidades porque antes tinha de assinar as cartas registadas e gastava dinheiro a ligar para Couce a avisar das que já cá estavam”, conta.
As cartas chegaram há um mês e água talvez chegue um dia. “Não vejo explicação para o atraso nas cartas. Estamos a negociar com a empresa chinesa a quem o serviço está concessionado para conseguirmos que chegue lá a água”, disse o presidente da Câmara de Valongo, José Manuel Ribeiro.