A propósito de A Sala de Aula

Habituada a respeitar M.F.M., cuja tese de doutoramento, Educação e Sociedade no Portugal de Salazar (1978), teve em mim influência, nomeadamente para a realização das minhas provas de doutoramento na Universidade do Porto, foi com surpresa que verifiquei que A Sala de Aula, feito a partir de relatos de professoras e alunas, não foge ao mais vulgar senso comum e tem a densidade teórica de uma conversa de café.

Apesar de M.F.M. considerar que não pretende fazer generalizações e de salientar que o seu livro se baseia apenas no relato de oito docentes, quatro alunas e uma mãe, o certo é que destes relatos tira ilações sobre as escolas e o ensino público. Bastante diferente, até porque mais despretensioso, Diários de Uma Sala de Aula pode ajudar a compreender uma parte – e, saliento, apenas uma parte – do que se passa nas nossas escolas. O que a mim me parece perigoso são os comentários e o “atirar de culpas”, perante a actual situação educativa por alguém que, apesar de dizer que este não é um livro científico, tem um doutoramento em Sociologia da Educação e se apresenta como socióloga e historiadora. Esperávamos, de alguém com o currículo académico de M.F.M., mais do que opiniões que não estão longe do mero senso comum.

Quero, contudo, salientar, antes de passar a uma análise mais detalhada do livro A Sala de Aula, que há aspectos em que estou de acordo com a autora, desde logo, com aquilo que diz na contracapa da publicação: “Mantendo-se tudo como está, as escolas de pobres serão inevitavelmente guetos de onde é difícil sair e as dos ricos aquários de onde os meninos só veem uma parte do mundo: a sua.”

Para M.F.M., a escola pública “é uma escola criminosa, indigna, estúpida” (PÚBLICO, 20/03/2014). Esta frase cataloga todas as escolas com todas as suas heterogeneidades e diferenças como más, muito más. Não é verdade! Por muitos defeitos que tenha o ensino público, as escolas não podem ser vistas a preto e branco, não há escolas boas e escolas más, há escolas melhores e escolas piores.

O livro dá um retrato catastrófico do ensino público, que, se corresponde à realidade, corresponde apenas a uma parcela da realidade. Concluir, como o faz Carlos Fiolhais, que existe um “colapso da escola” (PÚBLICO, 19/3/2014) é tomar a parte pelo todo e não ter em conta as boas práticas educativas que ocorrem todos os dias por esse país fora. Até posso acreditar que com estes livros M.F.M. pretende defender a escola pública. O que, de facto, acontece é exactamente o oposto. Qualquer pai ou mãe que leia A Sala de Aula irá colocar o seu filho, desde que tenha condições económicas para isso, no ensino privado. Os efeitos da obra são o contrário daquilo que a autora parece pretender: criar guetos e aquários.

Com A Sala de Aula a autora parece procurar nos relatos das diaristas apenas aquilo que confirma a sua tese de que a escola pública é “criminosa, indigna, estúpida”, salientando sobretudo os episódios de conflito e de caos e desprezando os bons exemplos. Senão como se compreende que, por exemplo, M.F.M. ignore este, entre outros exemplos dados, em Diários de uma Sala de Aula:

“A primeira aula do dia seria dedicada à continuação do estudo de Felizmente Há Luar! Feita já, em dias anteriores, a contextualização histórico-social e o estudo dual das personagens, a lição de hoje centrar-se-ia no estudo da linguagem e do estilo. Quando me preparava para ditar o sumário, o Gonçalo, delegado da turma, interpelou-me, dizendo que seriam os alunos a sugerir o texto do sumário. Fiquei surpreendida. A turma não é muito dada nem a surpresas, nem a contestações. São miúdos muito serenos e, nesta altura do ano, notas e entradas no ensino superior parecem constituir todas as suas preocupações e pensamentos.

Como perceberam a minha reacção, o Gonçalo apressou-se a justificar: “Hoje faremos uma festa porque é um dia importante na cultura portuguesa. Se Antero de Quental fosse vivo, faria 170 anos!” (Diários de uma Sala de Aula, p.52)

Segue-se o relato da aula preparada pelos alunos para homenagear Antero! Estranho é que, defendendo a autora a escola pública, não questione as sucessivas políticas educativas que têm vindo sucessivamente a desinvestir (ou a cortar gorduras, como diz o primeiro-ministro) nas escolas públicas, enquanto as escolas privadas, frequentadas pelos ricos e que escolhem os seus alunos, continuam a ser subsidiadas com o dinheiro dos nossos impostos. Nos rankings são estas que aparecem em lugar cimeiro, mas não por serem melhores (o que, aliás, M.F.M. reconhece), mas por terem outros alunos.

Defendendo a ideia de meritocracia e de que a escola deve ser um veículo de mobilidade social, não se tem em conta – apesar das margens de autonomia e liberdade das escolas e dos professores, não obstante um bom ou mau professor poder fazer toda a diferença na vida das crianças e jovens – que a escola não pode ser o único, nem sequer o mais importante factor de nivelamento social. A reprodução de que falam Bourdieu e Passeron é um facto! Sendo a escola pública uma escola de todos e para todos (ao contrário do ensino privado), as escolas e os professores vêem-se hoje confrontados com uma multiplicidade de papéis: assistentes sociais, psicólogos, até médicos…

Longe vai o tempo em que aos professores cabia apenas a tarefa de ensinar! Sem dúvida que essa deve ser a sua principal missão, mas como alguns relatos do livro Diários de Uma Sala de Aula tão bem realçam, como pode um professor estar preocupado apenas com ensinar quando tem à sua frente alunos com fome, filhos de toxicodependentes ou de desempregados, alunos
institucionalizados ou com necessidades educativas especiais? O professor até pode estar preocupado apenas com o que ensina, os alunos é que por vezes têm preocupações bem mais importantes do que o aprender. Ter dinheiro suficiente para ter uma casa condigna e comida na mesa, ter livros em casa, ter pais capazes de conversar com os filhos e que não estejam preocupados com a forma como vão pagar a conta da luz ao fim do mês ou com as horas de trabalho extra que têm de fazer, fazer visitas a museus, ter tempo (e dinheiro) para ir ao cinema e ao teatro fazem toda a diferença.

Por muito que se queira, a justiça social não pode partir só da escola. A justiça social tem de partir de políticas que aumentem salários, combatam o desemprego, apoiem a saúde, estabeleçam os apoios sociais necessários, incentivem a cultura. Depois de isto estar resolvido, então a escola será seguramente um motor de mobilidade não só para alguns, mas para muitos. A questão é saber se isso interessa a quem está no poder!

Para M.F.M., os culpados desta situação caótica são todos os ministros que se sucederam na pasta desde Abril de 1974. Mas então onde fica a herança que chegou a 1974? Como a própria autora refere, em 1974 a taxa de analfabetismo era de 35%, a mais elevada da Europa, as crianças começavam a trabalhar com sete, oito, nove e dez anos e as universidades eram ilhas frequentadas pelas elites. Será que a redução da taxa de analfabetismo, a massificação do ensino, a abertura das universidades a todos (o que agora parece estar em perigo!) não são aspectos positivos a realçar destes 40 anos? Não podemos é querer ter uma escola para todos com o tipo de ensino de escolas que são só para alguns.

Outro dos grandes problemas para a autora são as ideias propagadas pelas Ciências da Educação e a formação de professores nesta área. Gostaria de salientar que nenhum licenciado, mestre ou doutorado em Ciências da Educação tem habilitações para ser professor. Um professor de História tem a sua formação de base em História, um de Matemática em Matemática, e assim consecutivamente. Os professores do 1.º ciclo e os educadores de infância têm habilitações próprias nestas áreas. Alguém que tenha uma licenciatura em Ciências da Educação não pode leccionar em nenhuma escola deste país, com excepção do ensino superior. Assim sendo, não deixa de ser caricato que tanto a autora como o actual ministro da Educação diabolizem as Ciências da Educação como um dos grandes males da escola pública. O “eduquês” de que muitos falam é uma linguagem tecnocrática do ministério que tende a ser confundida com as Ciências da Educação e a linguagem dos domínios científicos que delas fazem parte. Interessante também é que se em qualquer outra área do saber se exijam conhecimentos especializados, na educação se considere que eles não são necessários ou até perniciosos. Associar a falta de exigência, o facilitismo, a ausência de autoridade do professor, a falta de necessidade de socialização das criança às Ciências da Educação é, no mínimo, desconhecimento dos curricula e do ensino das faculdades de Ciências da Educação. Se para um bom professor de Matemática é essencial ter uma formação sólida em Matemática, não deixa também de ser importante para se ser professor (de Matemática ou de outra coisa qualquer) ter conhecimentos de Sociologia da Educação, Psicologia da Educação, História da Educação, etc.

Com a autora, estou de acordo com a ideia de que a prolixa legislação que todos os dias é enviada para as escolas atrapalha, condiciona e mina a actividade profissional dos professores. Com a autora, estou de acordo com a ideia de que os pais têm o direito e o dever de participar na vida da escola. Com a autora, estou de acordo com a ideia de que as Ciências Sociais e Humanas não podem estar subjugadas às Ciências Exactas e que uma sólida formação humanista é essencial para formar cidadãos informados e responsáveis. Com a autora, estou de acordo que é necessário que os alunos saibam escrever e que testes de escolha múltipla são, no mínimo, castradores. Com a autora, estou de acordo de que é necessário termos docentes “bem preparados, bem remunerados e acarinhados pela sociedade” (p. 267). Com a autora, estou de acordo que o papel dos sindicatos é a “defesa dos direitos dos trabalhadores: horários decentes, condições de trabalho humanas e melhores salários” (p.194). Cabe não só aos professores, mas a toda a sociedade a defesa da escola pública de qualidade.

Não estou de acordo que este livro seja o retrato da escola pública em Portugal!

Nota: Parece-me importante haver olhares externos. Obviamente que isto é possível em educação e poucos se atreveriam a fazer o mesmo em áreas como a saúde ou a justiça. Que fique claro que não defendo coutadas!

Educadora de infância

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