Documentos da ONU mostram como Assad usa a fome como arma
O regime sírio impõe a submissão a quem está desesperado e sob cerco. Assim, a ajuda internacional acaba por contribuir para o legitimar.
O alerta da Agência da ONU para os Refugiados Palestinianos chega dois meses depois de o Conselho de Segurança ter aprovado uma resolução onde se exige a Bashar al-Assad que permita de imediato aos funcionários dos grupos de ajuda acederem às zonas onde os sírios mais precisam – foi o primeiro grande sucesso diplomático deste conflito, com os Estados Unidos e os europeus decididos a centrarem-se na assistência, uma vez que não conseguem travar a violência.
Há 9,3 milhões de sírios a precisar de assistência para sobreviver dentro da Síria; destes, a ONU estimava em Fevereiro que 250 mil estivessem encurraladas em vários pontos do país.
Entretanto, o Programa Alimentar Mundial (PAM) viu crescer de forma significativa o número de sírios a que consegue fazer chegar alimentos: de 3,2 milhões em Fevereiro passou para 4,1 milhões em Março. Mas como conclui um relatório da ONU a que a revista Foreign Policy teve acesso, isto não significa que o PAM tenha começado a chegar a mais sítios – o que aconteceu é que mais pessoas sucumbiram à fome e aceitaram abandonar zonas controladas pelos rebeldes a caminho de sectores dominados pelo regime.
Em Março, num relatório sobre Yarmouk, a Amnistia Internacional acusava o Governo de Assad de “deixar civis à fome como arma de guerra”. O levantar do cerco no campo de Damasco foi a única consequência concreta da conferência de Genebra, que juntou regime e oposição, e começou ainda antes da aprovação da resolução no Conselho de Segurança, em Fevereiro. Houve dias em que os doentes puderam sair e a comida começou a entrar, pela primeira vez desde o início do cerco do regime, em Julho do ano passado. Entretanto, o regresso dos confrontos impede a ajuda de continuar a chegar – a ONU estima que as últimas rações que distribuiu durassem até domingo.
Mesmo sem confrontos, sair destas áreas cercadas não é uma decisão fácil. Há muitas notícias de gente detida assim que saiu de Yarmouk – a ONU tentou manter-se a par do destino dos primeiros a deixar o campo, mas não conseguiu controlar até ao fim das acções do regime – ou da Cidade Velha de Homs, por exemplo, onde o cerco dura há 20 meses e os bombardeamentos são constantes desde Janeiro.
Abu Issa, de 60 anos, contou ao jornal britânico Observer que os três filhos deixaram Yarmouk: “Estavam desesperados, queriam sair por quaisquer meios”, diz. “Mas foram presos no primeiro checkpoint e nunca mais soube nada deles, não sei se estão vivos ou mortos.”
Pelo menos 194 pessoas morreram por falta de alimentos e cuidados médicos antes das primeiras distribuições de ajuda em Yarmouk. A esmagadora maioria dos médicos fugiu do país e muitos hospitais foram alvo de bombardeamentos: em Alepo, dos 5000 médicos que exerciam sobravam em Setembro 36.
“Só passando para a área do regime é que as pessoas deslocadas no interior do país conseguem receber comida”, afirma à Foreign Policy Andrew Tabler, analista do Washington Institute for Near East Policy. “Continua a campanha do regime que só permite fornecer comida nas áreas que controla enquanto mata à fome as áreas controladas pela oposição e cercadas.”
Joshua Landis, director do Center for Middle East Studies da Universidade de Oklahoma, analista com profundo conhecimento dos Assad, lembra um risco muito real para quem foge para as zonas controladas pelo Governo: “Há uma grande possibilidade de que os que se entregam ao regime venham a ser torturados”.
Duas metades
Os documentos da ONU citados pela revista norte-americana descrevem um enorme movimento de sírios que têm abandonado as zonas da oposição nos últimos meses; aconteceu em Homs, mas também nas regiões rurais de Hama, com habitantes a mudarem-se para os bairros de Hama City e Salamiya, controlados pelo regime. O mesmo do Leste para o Ocidente de Alepo – a metade da cidade nas mãos da oposição tem sido alvo da mais brutal campanha de bombardeamentos desde o início da guerra, com dezenas de barris carregados de explosivos a caírem diariamente.
É um país dividido entre os que têm quase tudo e os que nada têm, escreve Martin Chulov no Observer. Na metade de Alepo do regime há água e comida e até a electricidade chega quase sempre. No Leste, há cada vez menos de tudo excepto destruição: activistas e responsáveis militares citados pelo semanário dizem que nos últimos meses 60% do território controlado pela oposição foi destruído.
Um dos poucos médicos que permanecem no Leste da grande cidade do Norte da Síria diz a Chulov que todos os dias recebe “30 a 40 pessoas feridas e tantos corpos”. Sem equipamentos ou pessoal, a maioria dos feridos são enviados para a Turquia.
O dilema das agências
Em Homs, Hama e muitas zonas dos arredores rurais de Damasco multiplicam-se os relatos de comida a ser trocada por submissão, com a ajuda a chegar depois da entrega das armas e do içar da bandeira síria.
Há áreas do país onde a ONU não culpa apenas o regime pela impossibilidade de fazer chegar ajuda a quem dela precisa. “Os dois lados têm impedido a ajudar de passar”, diz Abeer Etefa, porta-voz do PAM para o Médio Oriente. Há grupos rebeldes que impedem distribuições do PAM em partes de Deir Ezzor ou Raqqa, duas cidades do Norte – nos dois casos são unidades do mais radical dos grupos jihadistas a operar na Síria, o Estado Islâmico no Iraque e no Levante (ISIS, ligado à Al-Qaeda).
Os grupos radicais islamistas são um dos motivos que dificultam a distribuição da ajuda, mas na maioria das situações, quem tem fome está sob cerco do regime. E é assim que a grande maioria da ajuda distribuída pela ONU vai para sírios que estão em zonas sob controlo de Assad.
“É um enorme dilema para a comunidade internacional e para o Programa Alimentar Mundial”, diz Joshua Landis. “Devem ou não parar de distribuir toda a ajuda porque esta passa pelas mãos de Assad e assim o legitima?”.