João Tordo e a “Biografia involuntária dos amantes”

“Biografia involuntária dos amantes” não procura a (des) culpabilização.Em vez de atacar, João Tordo procura compreender

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Gleb Granich/Reuters
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“Biografia involuntária dos amantes” (Alfaguara) é um exercício ficcional e de reflexão de João Tordo (n. 1975, Lisboa) perante a estranheza causada por o “outro”.


A propósito de um acidente de automóvel com um javali, em que o animal morre, o poeta Saldaña Paris faz algumas revelações ao narrador, seu companheiro de viagem. Esse drástico acontecimento desencadeia uma mutação irreversível na vida destes dois homens. As elípticas confissões do poeta, momentos em que o leitor tem conhecimento da existência da misteriosa Teresa, motivam o narrador a descobrir a raiz da amargura do seu amigo. Este narrador, homem nunca nomeado, sai do seu território, da sua zona de conforto, e vai à procura de quem não conhece para poder salvar e compreender esse singular poeta e amigo. Para o poder fazer, ele secundariza o pragmatismo de uma via de auto-satisfação, ou, pelo menos, de um confortável alheamento ao sofrimento de outrem. Essa abdicação liberta-o. E no caminho para compreender e aceitar o seu semelhante, ele reconhece-se e consegue aprofundar o conhecimento sobre si próprio. Enfrentar os defeitos de Saldaña Paris implica, mais cedo ou mais tarde, enfrentar as suas próprias lacunas.
A relação afectiva entre Saldaña Paris e Teresa, a personagem mais complexa e completa deste romance, semeia interrogações sobre a própria conduta moral do narrador.


As dores do resultado da viagem não são exclusivas de um “ele”, terceira e distante pessoa. Essas dores ficarão entregues a um “Nós”, pois implica evolução e reconhecimento de quem pensava vir a ser um mero mensageiro. E esta parte é muito importante no romance: o “Outro” não é só um “ele”; é um elemento de um todo a que nos entregamos. É um “Nós.” Embora haja a personificação de culpa, mais concretamente de autoria de culpa em Franklim (tio de Teresa), “Biografia involuntária dos amantes” não procura a (des) culpabilização. A sua demanda tem como objectivo a aceitação das características de alguém que, por factores exógenos, pode invadir o espaço (afectivo, social) considerado pertença do “eu”. Em vez de atacar, João Tordo procura compreender. Em entrevista dada no Festival Literário da Madeira, o autor afirmou que “essa alteridade talvez tenha a ver com o facto de eu quando nasci ter tido um gémeo idêntico que não sobreviveu. No fundo, passei a minha vida toda à procura de uma identificação que desapareceu. Daí essa necessidade de eu escrever sobre o 'Outro'”.


A Literatura é o caminho escolhido para a compreensão.


Depois de seis romances com muito sucesso, João Tordo arrisca ao usar novas estratégias narrativas. Segundo o autor, “a estrutura, que tem mais interrupções, é menos linear, em que partes do livro são telefonemas, cartas, outras são narração.” A adopção de um ponto de vista feminino foi, também, um grande desafio, pois o próprio escritor confessou não saber se viria a conseguir escrever no ponto de vista feminino.


O livro sai enriquecido com as diferentes técnicas narrativas, pois não há perda de sentido nem de coesão.


A pluralidade de perspectivas é potenciada pela estrutura narrativa. A verdade, conceito vinculado ao bom e ao belo, é dissociada da bondade. O narrador terá de enfrentar essa escolha: a verdade poderá destruir para sempre o seu amigo.
João Tordo preocupa-se em se dar à alteridade e à resolução da incógnita complexa que é o relacionamento entre um conjunto de homens e/ou mulheres. E ao fazê-lo, expõe-se.


O autor escolheu um complexo caminho para chegar ao leitor. Neste processo, ganhou o leitor, o autor e a literatura.

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