O cineasta de terror que mandava os cenógrafos estudar Piranesi
Mario Bava, estilista maior do cinema de género italiano dos anos 1960, é homenageado na Festa do Cinema Italiano. O seu filho Lamberto Bava fala do pai
Lamberto, 70 anos acabados de fazer, está em Portugal a convite da Festa do Cinema Italiano, que nesta edição homenageia Mario Bava com uma retrospectiva a decorrer na Cinemateca Portuguesa. Entre aterrar em Lisboa e apresentar o filme de abertura do ciclo, A Máscara do Demónio (1960), Lamberto prestou-se ao “prazer" de falar do cinema do pai, com o qual ainda chegou a trabalhar e cujas “pegadas” seguiu tornando-se realizador. Da sua obra, também maioritariamente dedicada ao cinema fantástico, o título mais conhecido é Démoni (1985), escrito e produzido por Dario Argento, autor de Suspiria e talvez o mais directo seguidor do estilo que Mario Bava instituiu ao longo da década de 1960.
Tendo trabalhado de perto com ambos, Lamberto recorda-se bem do que unia “mestre” e “discípulo”: “O meu pai e Dario Argento conheciam-se bem; chegou, por exemplo, a fazer efeitos especiais para Inferno, onde eu fui assistente de realização. Era tudo uma questão de entreajuda entre amigos e oficiais do mesmo ofício.” O que levava até ao “perdão” de coisas mais sérias: “Em 1963, o meu pai fez um filme chamado A Rapariga Que Sabia De mais, que se passava à volta da Piazza d'Espagna, em Roma. Alguns anos depois, estreou-se o primeiro filme de Dario, O Pássaro com Plumas de Cristal [1969]; as histórias são praticamente iguais, e lembro-me que Enzo Corbucci, que tinha escrito a história original de A Rapariga... achava que devia processar o Dario porque o filme era copiado. O meu pai, com o seu sentido de humor, disse-lhe: 'Pois, pode ser que sim. Mas a verdade é que o nosso filme não fez assim lá tanto sucesso e o dele está a correr lindamente...'”
A Mario Bava devem-se alguns dos títulos mais clássicos do cinema de género italiano da década de 1960 – A Máscara do Demónio, I Tre Volti della Paura (1963), Sei Donne per l'Assassino (1964), Operazione Paura (1966, o seu filme favorito de entre todos os que fez). O cuidado visual que colocou em todos os filmes – com elaborados movimentos de câmara, influências da literatura clássica e um irrepreensível uso da luz e da cor – traía a sua formação em Belas-Artes. “O meu pai começou por ser pintor e lembro-me que sempre que contratava um cenógrafo para um filme mandava-o ir ver as gravuras de Giovanni Battista Piranesi. E era um grande leitor. Lia tudo, de banda desenhada, que era uma coisa quase profana, aos romances policiais da colecção amarela da Mondadori [o equivalente italiano da nossa colecção Vampiro], com uma paixão pela literatura russa.”
É dessa cultura, e do seu trabalho durante mais de 20 anos como director de fotografia (com cineastas como Roberto Rossellini, Luigi Comencini ou Jacques Tourneur), que nasce o estilo visual inconfundível de Mario Bava. “Na rodagem de A Máscara do Demónio o director de produção disse-me que tinham montado uma câmara sobre carris que tinha de realizar 120 movimentos numa única sequência...", recorda Lamberto. "O meu pai foi um dos primeiros cineastas italianos a utilizar o storyboard. E gostava muito de trabalhar com os contrastes, com negros muito negros, brancos muito luminosos e cores muito puxadas. Lembro-me que o chefe electricista dizia que as gelatinas coloridas que usavam nos projectores iam para o lixo a seguir à primeira utilização!”
A Máscara do Demónio foi “o primeiro filme de terror de um nível mais sério” feito em Itália, como explica o filho, descrevendo o pai como um dos dois cineastas que deram ao género as suas “cartas de alforria” locais – imediatamente a seguir a Riccardo Freda, com quem Mario filmou várias vezes como director de fotografia (chegando inclusive a acabar dois filmes que Freda abandonou por desentendimentos com os produtores). Também porque “por sorte, ou talvez para seu azar, A Máscara do Demónio correu muito bem nos Estados Unidos. E a partir desse momento ficou catalogado como um cineasta de género...”
De tal modo que Mario Bava é muitas vezes mencionado a par de Roger Corman, o mestre americano do cinema de género de baixo orçamento, que distribuiu alguns dos seus filmes nos EUA – os primeiros filmes do cineasta italiano são contemporâneos do ciclo de adaptações de Edgar Allan Poe por Corman. Mas Bava foi também influência de muitos dos jovens cinéfilos americanos dos anos 1960 que deram os primeiros passos com Corman. Martin Scorsese invocou-o directamente em Shutter Island e Joe Dante, o autor de Piranha e Gremlins, diz que “não se consegue escolher um filme de Mario Bava, têm de se ver todos”.
“Quando lhe perguntavam por que é que tinha tanto sucesso nos EUA, ele dizia que sempre lhe tinham dito que os americanos eram muito crédulos,” explica Lamberto entre risos. “Gabriele Acerbo, um jornalista italiano que escreveu um livro e fez um documentário sobre o meu pai, disse-me que tinha telefonado a uma série de cineastas americanos para recolher depoimentos. E assim que falava do nome de Mario Bava, todos se mostravam imediatamente disponíveis.”
Mas o pai não estava especialmente interessado em agradar a quem quer que fosse. “Preferia rodar com pouco dinheiro e, acima de tudo, fazia filmes para si próprio e esperava que o público também gostasse.” Fazia-o numa altura em que a vitalidade industrial do cinema italiano era indesmentível: “Quando eu era miúdo, o cinema italiano produzia 300 filmes por ano,” diz Lamberto. “Muitos deles eram filmes comerciais que tinham um mercado internacional para os escoar. Hoje, isso faz-nos certamente falta. E já não há cineastas a trabalhar no género como então havia...”
A retrospectiva Mario Bava decorre até quinta-feira, 17, na Cinemateca Portuguesa. O programa pode ser consultado em www.cinemateca.pt ou www.festadocinemaitaliano.com