Ex-combatente de Viana exorciza em verso participação na guerra colonial

Cerca de 300 rimas a acompanhar outras tantas fotografias retratam as Memórias de uma Guerra, de João Hilário Lima, lançadas nos 40 anos do 25 de Abril.

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João hilário Lima cumpriu uma comissão de dois anos em Moçambique, entre 1970 e 1972 DR

“Coisas do acaso” disse ao PÚBLICO este filho de lavradores da aldeia da Facha, em Ponte de Lima. Há 25 anos que escolheu Viana do Castelo para residir por causa do negócio familiar que criou, depois do regresso de França. João Hilário ainda nem acredita que as Memórias de uma Guerra estão prontas. Foram apresentadas ao público neste sábado, na biblioteca municipal de Viana, numa edição do Centro de Estudos Regionais.

A primeira quadra surgiu solta na memória a 13 de Agosto de 2013: “Viana, emocionada, viu-nos partir/E o comboio a Lisboa nos levou/Cais de Alcântara, no dia a seguir/De lá todo o contingente embarcou”.

“Saiu a primeira quadra, e as outras vieram em catadupa. Acordava de madrugada para passar para o papel as rimas que me surgiam a dormir. Por todo lado por onde andasse, se fizesse outra rima, apressava-me a escrevê-la, para não esquecer”, explica.

No dia em que lhe ocorreu este projecto, contemplava, sentado na areia da praia Norte, em Viana do Castelo, o monte de Santa Luzia. Estava de férias. Descontraído, foi assaltado por recordações que o fizeram recuar aos tempos de instrução, na carreira de tiro existente no monte sobranceiro à cidade. Tinha 21 anos quando se apresentou para cumprir o serviço militar. A instrução durou pouco mais de 15 dias e fez dele 1.º cabo de transmissões no Batalhão de Artilharia (Bart) 2901.

“Se soubéssemos o que íamos encontrar em África, que nada tinha a ver com o que estávamos a aprender cá, tínhamos desertado todos”, desabafa o ex-combatente.

Os cerca de 300 poemas que reuniu em cinco meses contam a partida para a guerra, de Viana do Castelo até vila de Montepuez, no norte de Moçambique. Foi lá que cumpriu 26 meses de comissão. Pelo meio, os poemas de João Hilário descrevem episódios que nunca mais esqueceu. Por exemplo, o susto a bordo do Império, em pleno alto mar, quatro dias depois de o paquete ter zarpado de Lisboa. A embarcação sofreu um rombo no casco, por baixo da casa das máquinas. “Esteve para ir ao fundo e andou à deriva quatro dias”.

“Tivemos que comer as rações de combate enquanto esperávamos por ajuda. Fomos então rebocados por um navio grego até Mindelo, na ilha de S. Vicente, em Cabo Verde, onde chegámos a 15 Janeiro de 1970. Ficámos à espera do navio Niassa, que nos levou ao destino, em Moçambique”, recorda.

No livro, João Hilário descreve em rima o dia-a-dia dos tropas, os ataques de que foram alvo, a perda de companheiros em Cabo Delgado, durante a operação Nó Górdio. Fala também das saudades da família, tão distante. E evoca as cartas escritas, em rima, à mãe, pedindo-lhe notícias, que diminuíssem a distância, e fotografias, para relembrar rostos que teimavam em querer fugir-lhe da memória. À namorada, que viria a ser noiva e, até hoje, mulher, fazia juras de amor eterno e promessas de um rápido regresso.

“Hoje já me aguento um bocadinho melhor. Mas chorei muitas vezes. Comovi-me muitas vezes a ler as quadras que eu fiz.”.

Os poemas ganharam forma de livro por força dos incentivos daqueles a quem ia mostrando os seus escritos. Uns ajudaram na correcção dos textos, outros abriram portas à publicação, objectivo que nem estava nos planos de João Hilário. Orgulhoso do resultado, o autor diz ter ficado sobretudo em paz com o passado.

“Fui buscar tudo ao fundo do baú, passados 44 anos, para exorcizar o que estava cá dentro. Porque nós viemos e nunca ousámos falar do que lá se passou. Só passados estes anos é que gente começa a deitar cá para fora essas memórias, para se libertar. Sinto-me mais aliviado. É um passado que já não me pesa.”

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