População da Guiné-Bissau vota para virar página dos golpes

Eleições marcam regresso a exercício democrático. PAIGC favorito nas legislativas, incerteza nas presidenciais. “As pessoas estão com receio” de repetição do golpe militar de há dois anos.

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Os maiores desafios chegarão quando forem conhecidos os resultados da vontade de 775 mil eleitores Joe Penney/Reuters
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Eleitores são chamados a escolher entre 13 candidatos presidenciais e 15 partidos Joe Penney/Reuters

As eleições assinalam o regresso à democracia, após o derrube do governo de Carlos Gomes Júnior, Cadogo. Para que a palavra fosse dada aos guineenses contribuíram a pressão internacional, o isolamento das autoridades pós-golpe e as dificuldades financeiras de um país em que as Forças Armadas têm sido instrumento de desestabilização.

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Os maiores desafios chegarão quando forem conhecidos os resultados da vontade de 775 mil eleitores chamados a escolher entre 13 candidatos presidenciais e 15 partidos. A forma como os militares reagirem ao voto popular e a capacidade dos eleitos para gerirem equilíbrios internos e promoverem reformas, designadamente do aparelho militar, é determinante para o futuro próximo de um país que tem estado no mapa internacional por más razões – por ser frequente palco de violência político-militar, por ser plataforma do tráfico internacional de droga.

“As pessoas estão com receio de, a qualquer momento e à semelhança do que aconteceu a 12 de Abril, os militares poderem afastar a vontade popular”, confirma Luís Vaz Martins, presidente da Liga Guineense dos Direitos Humanos.

Mais do que árbitro, decisor
O carácter parlamentar do regime faria pensar que são as legislativas as eleições verdadeiramente relevantes. Mas na Guiné-Bissau, como em outros países africanos, “o Presidente tem um papel decisivo em todas as questões importantes, mais do que árbitro é um decisor”, observa Eduardo Costa Dias, investigador do ISCTE-IUL (Instituto Universitário de Lisboa). O golpe de 2012, liderado por António Indjai, chefe das Forças Armadas, ocorreu precisamente antes da segunda volta das presidenciais, quando, após um triunfo na primeira volta, com quase 49%, tudo apontava para a eleição como chefe de Estado do então primeiro-ministro, Carlos Gomes Júnior, Cadogo, então líder do PAIGC (Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde).

Sem sondagens, sem forma de avaliar o modo como os guineenses encaram o golpe de 2012 e olham para as alternativas que lhes são apresentadas, é impossível fazer prognósticos. Mas, mesmo tendo partido tarde para a corrida eleitoral, por ter demorado a definir liderança e estratégia, seria uma surpresa – atendendo ao histórico – se as legislativas não fossem ganhas pelos “libertadores”. Nas anteriores legislativas, em 2008, o PAIGC conseguiu 49,52% e elegeu 67 dos cem deputados.

Confirmando-se um triunfo do antigo partido único, o próximo primeiro-ministro será o recém-eleito líder, Domingos Simões Pereira, DSP, antigo secretário executivo da CPLP (Comunidade dos País de Língua Portuguesa). Pereira já procurou tranquilizar a desconfiança da cúpula militar e anunciou que não haverá “caça às bruxas”. Terá confidenciado em círculos privados o desejo de formar um governo que inclua outras forças partidárias, e de – mesmo sem António Indjai, indiciado pelos EUA por tráfico de droga – manter a chefia militar em mãos balantas, a principal etnia do país, com grande peso nas Forças Armadas.

A outra grande força política guineense é o PRS (Partido da Renovação Social), que há seis anos elegeu para o Parlamento cessante 28 deputados conseguidos com 25,21% dos votos. É agora liderado por Alberto Nambeia e estava já antes da morte Kumba Ialá, a ensaiar, pela primeira vez, um caminho sem o seu fundador e mais carismática figura.

Incógnita presidencial
O desfecho eleitoral parece mais incerto na corrida presidencial, em que pela primeira vez não participam candidatos que tenham sido “combatentes da libertação do país” – a independência foi proclamada em 1973, ainda antes do 25 de Abril.

Os apoios que reúnem e a dinâmica das suas campanhas fazem com que quatro dos candidatos sejam encarados como os que mais probabilidades parecem ter de passar a uma previsível segunda volta: João Mário Vaz, do PAIGC; Abel Incada, que corre pelo PRS; Nuno Nabiam, independente apoiado por Kumba, e ao qual são atribuídas ligações à cúpula militar; e Paulo Gomes, economista que foi administrador do Banco Mundial para a África Subsariana e tem o apoio de pequenos partidos e intelectuais. A tardia entrada em cena dos concorrentes “oficiais” permitiu aos dois independentes, que há meses estão no terreno, ambos com importantes meios, somarem apoios que podem revelar-se decisivos.

João Mário Vaz, conhecido como JOMAV, era ministro das Finanças do governo derrubado há dois anos. O apoio partidário deve garantir-lhe uma boa votação mas não necessariamente a eleição. Até porque a aparente unidade com que o PAIGC se apresenta às eleições não foi fácil nem é total. O partido viu alguns dos seus mais destacados militantes alinharem com o poder pós-golpe – o Presidente de transição, Serifo Nhamadjo, é oriundo das suas fileiras – e optou por “sacrificar” Cadogo para evitar a hostilidade da cúpula militar.

O primeiro-ministro derrubado pretendia voltar a concorrer à Presidência mas a direcção de Domingos Soares Pereira optou por uma solução de “compromisso”, deixando-o cair para não hostilizar os golpistas para quem Cadogo é “o inimigo”. A alternativa foi JOMAV, um nome que também não agrada à cúpula militar, pela sua ligação ao antigo chefe do Governo, e que não convencerá também todo o PAIGC, onde há simpatia por outros concorrentes à cadeira presidencial, designadamente por Paulo Gomes.

O peso balanta
O comportamento do grosso do eleitorado balanta, que se tem revisto politicamente no PRS, determinará o nome desta área política que poderá avançar para a segunda volta. Para além de Abel Incada, estão na corrida presidencial três outros nomes do campo “renovador”: Nuno Nabiam, presidente da Agência de Aviação Civil, o favorito de Kumba, que chegou a fazer campanha por ele, e dois candidatos que parecem reunir menos apoios: Ibraima Sori Djaló, presidente do Parlamento, e Jorge Malú, que já ocupou o mesmo cargo. Também Iaia Djaló, um antigo ministro dos Negócios Estrangeiros, que deixou o PRS em 2006 e agora lidera o Partido da Nova Democracia, concorre à chefia do Estado.

Até à morte de Kumba admitia-se uma fragmentação do voto da maior etnia do país, cerca de um quarto dos eleitores. A incógnita é agora saber o impacto eleitoral da morte, por paragem cardio-respiratória, há pouco mais de uma semana, do antigo Presidente da República, entre 2000 e 2003. O seu desaparecimento sem herdeiro designado – apesar do apoio que deu a Nabiam – “criou nos balantas um sentimento de orfandade” e pode mudar esse cenário e levar a uma concentração de votos no PRS e no candidato oficial do partido, Abel Incada, um “balanta puro e duro”, admite Xavier Figueiredo, director do boletim Africa Monitor. Miguel de Barros, sociólogo, director executivo da organização não-governamental guineense Tiniguena, afirma que o desaparecimento de Kumba permitiu a Incada “projectar-se”.

A concentração ou dispersão do voto balanta determinará não só o nome do candidato da área “renovadora” que poderá passar à segunda volta como vai interferir na definição do eventual adversário nessa ronda.

Paulo Gomes, o outro nome forte da corrida presidencial, formado em Paris e em Harvard, colhe simpatias nos meios urbanos, na diáspora e em sectores culturais. Situa-se no espaço eleitoral que valeu a Henrique Rosa, nas eleições de 2009, ganhas por Malam Bacai Sanhá, um quarto dos votos, o que faz dele uma alternativa a ter em conta. Tem também, como há dias disse à Reuters Vicent Foucher, do International Crisis Group, “fortes ligações na África Ocidental e uma imagem de potencial reformador”.

Há dias, num trabalho sobre a Guiné-Bissau, o centro de estudos com sede em Bruxelas de que Foucher faz parte, escreveu que as eleições de hoje podem abrir caminho para a chegada à hierarquia do Estado de uma “nova geração de políticos” capazes de “re-legitimar o Estado e convencer os militares a obedecerem [ao poder político eleito]”. Cansados da instabilidade, os guineenses esperam para ver.

A fase mais tensa do processo de transição começa quando forem conhecidos os resultados eleitorais. Miguel de Barros concorda que o grande desafio destas eleições é o “nível de aceitabilidade” da escolha presidencial pelas Forças Armadas – o nome do próximo Presidente da República será determinante para manutenção, ou não, da actual chefia militar. Mas considera que também o PAIGC e o PRS podem ver-se obrigados a conviver com escolhas presidenciais que não são as suas nestas eleições em que “tudo pode acontecer”.

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