Com este livro, Raquel Varela pretendeu realizar uma “história do povo” na linha historiográfica da people’s history, inspirando-se nos trabalhos de Howard Zinn e de Chris Harman. Uma vez que começa por citar estes nomes como modelos de investigação, estranha-se, desde logo, que não refira em lugar algum The Fire Last Time, de Chris Harman, que dedica um capítulo inteiro à revolução portuguesa. Esta não é, infelizmente, a mais grave omissão bibliográfica de uma obra que não cita — e só para dar dois exemplos, entre dezenas — os fundamentais Building Popular Power. Worker’s and neighborhood movements in the Portuguese Revolution, de John L. Hammond, ou Revolution at the Grassroots. Community organizations in the Portuguese Revolution, de Charles Downs.
Por outro lado, teria sido importante que a autora definisse o objecto e o perímetro da sua investigação, ou seja, que concretizasse o que entende por “povo”. Na ausência dessa caracterização prévia, o “povo” tanto pode encontrar-se nos populares que ocuparam o Largo do Carmo no dia 25 de Abril como naqueles que destruíram as sedes do PCP no Verão Quente de 1975. Deste modo, deixa de ser uma realidade para se tornar um conceito, instaurando-se a dúvida sobre se aquele não estará a ser funcionalizado ao serviço da demonstração de uma “tese”. Existirá, então, um povo “bom” e um povo “mau”, consoante corresponda ou não às expectativas ou pretensões teoréticas — e ideológicas — do historiador-intérprete.
Para agravar os problemas que a si própria se colocou, Raquel Varela pretende erigir o seu livro ao estatuto de história alternativa, feita em confronto com toda a historiografia “oficial” do 25 de Abril, até agora exclusivamente centrada, em seu entender, nas elites e nos aspectos político-institucionais. A sua história do povo teria, para mais, um suplemento de “autenticidade”. Esta presunção comete a injustiça de obliterar a já vasta literatura que sobre os movimentos sociais tem sido feita e, mais grave ainda, resvala num maniqueísmo que, opondo elites e povo, acaba por fornecer uma visão simplista de um processo complexo em que os actores políticos tiveram de se reposicionar constantemente, seguindo os avanços e recuos das movimentações sociais, mas também em que estas movimentações foram condicionadas por dinâmicas militares, políticas, institucionais e até internacionais.
Raquel Varela recusa esta ideia, sustentando que foi sempre o “povo” a comandar os acontecimentos e as grandes transformações. Impunha-se, assim, que explicasse por que motivo o povo não resistiu activamente ao que chama a “contra-revolução”, cujo momento-chave é o 25 de Novembro. O povo, como se disse, é aqui assumido enquanto “conceito amplo de classe trabalhadora” (p. 17). À luz desse conceito, não se entende a razão pela qual o livro é quase exclusivamente dedicado ao operariado e aos conflitos fabris, com escassas páginas sobre a Reforma Agrária e poucas ou nenhumas alusões aos trabalhadores dos serviços e do sector terciário.
O povo tanto poderia encontrar-se a ocupar fábricas e a fazer greves na cintura industrial de Lisboa, alegadamente na senda da democracia directa, como a engrossar as longas filas de votantes no sufrágio para a Constituinte, naquelas que foram as eleições mais participadas da história do regime democrático, com uma assombrosa afluência de 91,66% dos inscritos. Contrariando as campanhas que visavam evitar eleições ou menorizar o seu alcance (v.g., através do apelo ao voto em branco), o povo demonstrou inequivocamente estar ao lado da democracia representativa.
A autora tanto afirma que “a nacionalização (…) é uma política forçada pelos trabalhadores que, na dinâmica da revolução, a impõem aos partidos políticos e ao MFA” (p. 290), como, logo a seguir, refere que “a burguesia portuguesa lançou mão das nacionalizações para salvar os dedos, uma vez perdidos os anéis” (p. 293). Sustenta que o 25 de Abril trouxe consigo “a maior crise de um Estado europeu desde a Segunda Guerra Mundial” (p. 51), mas observa em simultâneo que não houve, durante a revolução, qualquer “crise geral do Estado” (pp. 43ss).
O problema não reside, portanto, em este ser um livro de história ideológica, mas na falta de densidade intelectual da autora para sustentar as suas próprias convicções. Por exemplo, critica os que vêem no PREC um momento de singular convulsão - e por isso se insurge contra Medeiros Ferreira por ter escrito um livro com o título Portugal em Transe, e contra Adelino Gomes e José Pedro Castanheira por terem publicado uma obra com o nome Os Dias Loucos do PREC (p. 482). Falar de “transe” ou de “dias loucos”, na perspectiva de Raquel Varela, é aderir ipso facto a uma visão patológica do processo revolucionário, algo que a autora entende merecer reprovação e denúncia. A sua obsessão pela conflitualidade leva-a, aliás, advertir os incautos para não se deixarem seduzir pelos versos de Chico Buarque (“Sei que estás festa, pá!”) e a tentar infirmar a ideia de uma “revolução sem mortos”, que, segundo a autora, surge associada à noção de um país de “brandos costumes” (pp. 83ss). Não só essa associação é abusiva como menospreza o alcance exemplar da revolução, aquilo que a singularizou aos olhos do mundo, e que, através da imagem icónica dos cravos nas espingardas, sempre foi considerado um dos maiores feitos dos militares de Abril — e, já agora, também do povo nas ruas. Para desmentir o “mito da “revolução sem mortos”, Raquel Varela contabiliza como “mortos da revolução” as vítimas da guerra colonial, como se ao 25 de Abril, que pôs termo a essa guerra, pudesse ser atribuída a responsabilidade por actos do regime deposto. Segundo a autora, esquecemo-nos de “que a festa na metrópole custou 13 anos de horror nas colónias” (p. 24).
A revolução, então, terá pecado por ser tardia, mas ainda assim suficientemente precoce para que a autora possa atribuir ao “povo” que saiu à rua no dia 25 de Abril uma elevadíssima politização que, pelos vistos, o Estado Novo permitia. Neste quadro, o MFA, caracterizado como um produto das “divisões dentro das classes dirigentes do Estado Novo” (p. 98), é visto como uma “força repressiva”, que várias vezes “tentou, em vão, impor a sua tutela sobre o movimento operário organizado” (p. 121). O controlo militar do povo começara, aliás, logo às primeiras horas do dia 25 de Abril. Salgueiro Maia, que tentou defender os populares de eventuais represálias do regime deposto, é criticado por ser um agente das “forças repressivas” (sic) corporizadas no MFA: “Salgueiro Maia e muitos outros tentaram tirar a população do Quartel do Carmo para a ‘proteger’, temendo confrontos” (p. 122). Não se compreende o alcance das aspas irónicas: efectivamente, Salgueiro Maia, como mandam os manuais de operações e o elementar bom senso, procurava que os civis não se vissem envolvidos num eventual fogo cruzado entre as tropas leais ao regime e os militares do MFA. Nas palavras de Salgueiro Maia, “a população não percebia bem o que se estava a passar”. Raquel Varela discorda: ao desrespeitar as ordens do MFA, o povo mostrava já a sua força e a sua dinâmica, a sua vitalidade revolucionária (pp. 28-29).
A tese central da autora, segundo a qual o país viveu em revolução até ao 25 de Novembro de 1975 e em contra-revolução a partir daí, é sintetizada numa frase lapidar: “A democracia directa é filha da revolução e a democracia representativa é filha da contra-revolução” (p. 485). Neste particular, discorda de Fernando Rosas, para quem o 25 de Novembro não foi uma contra-revolução e a democracia conseguiu emergir do processo revolucionário. Raquel Varela, pelo contrário, entende que a democracia representativa “não é um prolongamento da revolução, mas sim a sua interrupção abrupta, ou seja, a sua derrota” (p. 484). O triunfo da democracia representativa sobre a democracia directa inicia-se, segundo ela, com o 25 de Novembro de 1975, um golpe que veio, entre outros males, “estabilizar o Estado” e “repor o processo de acumulação de capital” (p. 498). As culpas pelo fracasso da revolução são atribuídas ao Grupo dos Nove, aos vários partidos e sobretudo ao PCP, que “aceitou não resistir ao 25 de Novembro” (p. 486). Trata-se de uma periodização que surpreende pelo seu simplismo, esquecendo que a democracia representativa, baseada na escolha de deputados através de eleições livres, não surgiu no 25 de Novembro, e que o seu triunfo mais decisivo ocorrera meses antes, em Abril, nas eleições para a Constituinte.
O livro, de resto, começa com uma descrição épica do cerco a São Bento e termina com uma defesa do “pacto social” consagrado na Constituição. A autora esquece-se de um facto singelo, mas essencial: se o sequestro da Constituinte tivesse sido levado às últimas consequências, não teríamos Constituição…
A conclusão mais óbvia a retirar desta obra é-nos dada pela própria autora, quando observa que “a fronteira entre a política militante e o senso comum é lata e difícil de medir” (p. 68). Este livro é um infeliz exemplo de como a política militante nos pode afastar do senso comum.
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