Poucas semanas depois de Fernando Tordo emigrar a queixar-se que este país está irrespirável para os artistas, os Xutos, os Silence4 e o Carlos do Carmo esgotaram concertos. E a Margarida Rebelo Pinto (MRP) encheu salas de cinema com o “Sei Lá”. Estará o país irrespirável para a cultura? Ou será que o público é soberano e sabe escolher? Eu vou pela segunda hipótese. E não me emociono com as estórias daqueles que acham que a cultura em Portugal “devia ser”.
O “devia ser” aparece todos os dias na imprensa e nas ruas. É o escritor que diz que os livros da MRP ou do José Rodrigues dos Santos (JRS) são maus e que as pessoas “deviam ler” outro tipo de obras. É o músico que acha que Tony Carreira é pimba e que as pessoas “deviam ouvir” outros artistas. Ou os que acham que as novelas, os "reality shows" e o futebol são coisas do Belzebu. E que as TVs “deviam ter” outros programas.
Este ideal parece muito bem intencionado. O problema é que ninguém consegue explicar quem decide o que “devia ser”. Será um Ministério da Cultura? Ou um conselho de sábios? E como vamos convencer as pessoas a lerem Lobo Antunes em vez de MRP? Queimamos os livros dela ou oferecemos benefícios fiscais a quem ler e fizer um resumo dos livros dele?
Vamos lá ver se nos entendemos: as pessoas são livres e consomem a cultura que quiserem! Se preferem histórias mundanas de quatro amigas a um profundo ensaio sobre a fragilidade da condição humana, isso é lá com elas. Significa que assim satisfazem melhor as necessidades que têm. E não há nada de errado nisto. É a liberdade de escolha a funcionar.
E como hoje em dia é fácil publicar um livro, ter um canal de televisão ou editar música, não existem desculpas para cada um não produzir ou consumir o que bem lhe apetece sem chatear os outros.
Esta ideia do que a cultura “devia ser” é “bullying” pedante que algumas avantesmas, que se acham intelectualmente superiores, exercem sobre os outros. Só que eu topo-as a milhas. E sei que o objectivo delas não é o bem da cultura, mas influenciar gostos e preferências para se venderem melhor.
É evidente que Fernando Tordo andava chateado porque ninguém lhe pegava. Ele tinha música para vender, mas os consumidores acharam-na obsoleta e preferiram outras. A isto chama-se lei da oferta e da procura. Não é para to(r)dos. É para quem pode. Para quem tem mercado. E não precisa de ajudas do Estado ou da autarquia.
Este queixume disfarçado de pedagogia não é a única arma dos arautos da cultura. Existe também o achincalhamento dos pares. É normal um escritor intelectualóide (coadjuvado por um crítico amigalhaço que nunca publicou nada na vida) dizer que MRP ou JRS não são escritores. E que são qualquer coisa “rasca”, “pop” e “fácil”. Mas que, pasme-se, vendem milhões!
À primeira vista, isto pode parecer inveja. Mas não é. É "marketing" baixo. Ao nível da feira de Carcavelos. Lembram-me aquelas ciganas que dizem para não comprarmos na barraca do lado, porque é só candonga e peças com defeito.
O mais estranho é que esta mania de uns autores se acharem mais que os outros passa para o público. Que se deixa contagiar por estas lérias e salamaleques de intelectuais de bolso. É comum ouvirmos os nossos amigos dizerem que quem lê MRP é fútil. Ou que quem vai aos concertos do Quim Barreiros é bimbo. Eu não sei se estes estereótipos estão correctos. Mas também não me interessa saber.
Aquilo que eu sei é que a satisfação que eu retiro da cultura que consumo em nada prejudica ou é prejudicada pelo consumo dos outros. É por isso que me estou a marimbar para os gostos dos outros. Nem tenho quaisquer pretensões de convencer os outros a gostarem daquilo que eu gosto. É-me irrelevante. Mas isto sou eu. Que não me sinto superior por ler Coetzee, nem inferior por gostar de ouvir Iron Maiden ou ir ao cinema ver o “Sei Lá”.