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O coleccionador

Não há surpresas nem alarmes no cinema de Wes Anderson, pacientemente, e até salutarmente, um dos mais repetitivos cineastas em actividade. Mas a sua repetição tem um aspecto característico: funciona por acumulação, como um coleccionador que repete objectos sem deitar nada fora. Um espectador que tenha adormecido a seguir a Bottle Rocket (1996, a estreia de Wes) e despertado agora a tempo de Grand Budapest Hotel talvez tenha dificuldade, na apoteose “cumulativa” deste filme, em reconhecer o mesmo autor. Mas, se se manteve acordado durante estes 18 anos, facilmente perceberá que Wes Anderson se limitou a fazer com que cada novo filme “contivesse” todos os anteriores. Por onde se chega, naturalmente, à impressão de “sobrecarga” (que já era notória no anterior Moonrise Kingdom) exalada por um filme como este, eventualmente demasiado cheio, demasiado “gordo”, uma grande espiral artificiosa construída sobre o seu próprio artificialismo (porque, pesem as abundantes referências, o cinema de Wes é cada vez mais “autista”, mais auto-centrado, como se vivesse num compartimento isolado do “mundo real” onde existisse apenas o “mundo de Wes”, e acreditem que nada dentro destes parêntesis é dito com sentido pejorativo).


Acontece que esse “mundo de Wes” está plenamente de acordo com os seus processos “cumulativos”. São também as suas personagens que não querem deitar nada fora, e isto vale tanto em sentido figurado (a “memória”) como em sentido literal (os objectos que dão corpo às memórias). A narrativa de Grand Budapest Hotel é exemplar: é a história de um homem que não quer deitar fora o hotel de que é proprietário, mesmo que ele se tenha tornado uma sombra decrépita do que noutros tempos foi. A questão, como habitualmente em Wes Anderson, é a fidelidade a um valor que foi importante no passado e que o presente já não confirma, e que precisamente por isso deve ser - mesmo que da forma patética ou desajeitada que é o estilo das suas personagens - recuperado e preservado. Noutros filmes esse valor é a imagem mítica de uma harmonia familiar que o tempo pulverizou. E aqui é ainda uma forma de comunhão, no limite, de família sem “família” (biológica, pelo menos): a relação de Zero, nome nada escolhido ao acaso, com o seu mentor, Gustave, o aprendiz de moço de fretes e o super-moço de fretes, sendo Gustave (Ralph Fiennes) a evidente figura paternal que “adoptou” o primeiro (Tony Revolori na juventude, F. Murray Abraham em velho), o “integrou”, a ele, imigrante chegado à Europa dos anos 30 fugido das guerras no seu país, e finalmente fez dele seu herdeiro. Grand Budapest Hotel é “a vida hoteleira com Monsieur Gustave”, e a personagem de Fiennes é na verdade uma reiteração de Steve Zissou, essa imagem de “patriarca” no cruzamento da sinceridade e da impostura que é crucial no cinema de Anderson. E como normalmente, também a essa personagem se exige um esforço de “coleccionador”: manter a família junta e, se possível, ampliá-la.

Por outro lado parece lógico que o filme se situe numa imagem idealizada da mitteleuropa do período entre guerras. Wes Anderson menciona explicitamente a inspiração de Stefan Zweig (sem adaptar nenhum escrito em particular), mas é igualmente claro que outra grande inspiração para esta Europa da época interbellum, com todo o artifício permitido pelo estúdio, são as inúmeras vezes que o cinema americano de 20 e 30 reconstituiu, intramuros, Viena, Budapeste ou Praga, altura em que esta Europa central foi um dos lugares mais comuns do cinema hollywoodiano, também por força da quantidade de gente que aportou a Hollywood vinda dali. Cinéfilo omnívoro, Wes encontra neste cenário muito do que faz o seu “museu” pessoal tal como exposto noutros filmes, a cultura europeia e o património clássico do cinema americano (mesmo se todas as referências, as históricas como as fílmicas, se jogam ainda numa espécie de “faz de conta”, que aponta à tangente mais do que ao centro; e por exemplo aquela espécie de “nazis” vem mais dum álbum de Tintim do que doutra coisa qualquer). Mas mais lógico ainda, quando se trata dum cineasta que frequentemente filma um sentimento de “classe” (as personagens de “betinhos”, tantas vezes criticadas como se a “betice” fosse um tique de Wes e não um elemento temático), é o encontro com esse apogeu da estratificação social que é a Europa das primeiras décadas do século XX, aqui numa “miscigenação” tão irónica que é impossível que Anderson desconheça, por exemplo, Sacha Guitry (e em particular Le Roman d''un Tricheur, o seu filme sobre moços de fretes e condessas).

O que decepciona um pouco, portanto, não é a repetição dos elementos com que Wes Anderson trabalha, antes o facto de a sua exposição parecer levar a melhor sobre outras questões. O envolvimento dramático, por exemplo, ou mais ainda a força das personagens - que é também a grande força da obra de Wes, essa capacidade para trabalhar em artificio e bricabraque sem perder a humanidade das personagens. Aqui isso parece menos conseguido, um pouco perdido entre uma certa rapidez excessiva (da acção, das cenas muito curtas), e talvez também de uma imaginação excessiva, porque (como nos filmes dos Marx dos anos 30, justamente) não há um plano que dê tréguas, não há um plano que se contente em “ligar” ou em “parar”, é uma lógica de “plano-acontecimento” levada ao limite e que no fim de contas o filme não suporta, com isso deixando a sensação de que se perde alguma coisa. A “caligrafia” de Wes é irrepreensível, e com Tarantino ele é hoje porventura o maior dos mestres-calígrafos americanos, desenhando, adornando, rebuscando, e se calhar perdendo-se a si próprio nesse processo. Ou, sem ironia (ou apenas com a ironia que o filme autoriza), meste-pasteleiro: há imensos bolos no filme, sofisticados e elaborados, e repare-se como são as cores deles, os brancos-baunilha, os vermelhos-morango, os castanhos-caramelo, que se transmitem às tonalidades cromáticas da fotografia... Lembram-se do que Hitchcock que dizia, que um filme devia ser “uma fatia de bolo” e não uma “fatia de vida”? Pois aqui Wes Anderson serve o bolo inteiro...

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