Um embaraço europeu que quase todos sacodem para o lado
Por que é que a Comissão nunca se deu ao trabalho de regulamentar as autorizações de residência é uma questão para a qual ninguém parece ter resposta
Oficialmente, várias fontes europeias contactadas pelo PÚBLICO sacodem a água do capote, lembrando que a concessão de autorizações de residência a cidadãos de países exteriores à UE constitui uma competência nacional. Juridicamente não é totalmente assim: desde o Tratado de Lisboa de 2009 que esta passou a ser uma competência partilhada entre a UE e os seus Estados membros. Só que, como a Comissão Europeia, o órgão executivo da UE, ainda não regulamentou esta competência, a questão permanece efectivamente nas mãos dos Estados.
Quase todos os membros da UE têm esquemas de concessão acelerada e facilitada de residência a cidadãos “endinheirados” de países terceiros. A tendência acentuou-se nos últimos anos sobretudo nos países com maiores dificuldades financeiras. Nestes casos, a concessão destas autorizações está sobretudo ligada à compra de imobiliário, no valor mínimo de 500 mil euros no caso de Portugal e Espanha, 300 mil em Chipre e 250 mil na Grécia.
Nos outros países europeus, a regra tem mais a ver com investimentos em empresas ou em títulos do tesouro, do que com a compra de imóveis.
A Holanda tem um esquema de concessão de residência para quem invista 1,250 milhões de euros em empresas nacionais. A Alemanha é menos exigente: 250 mil euros para o arranque e operação de empresas.
No Reino Unido, a condição é a compra de títulos do Tesouro no valor mínimo de 1,5 milhões de libras. Outros esquemas comparáveis existem em países da UE como Bélgica, França, Irlanda, Áustria ou Chipre, mas igualmente em vários países terceiros, como Estados Unidos, Canadá, Austrália ou Singapura.
No caso da UE, a grande questão que estes vistos especiais levantam é que permitem aos seus detentores deslocarem-se pela totalidade da zona Schengen sem controlos nas fronteiras, abarcando todos os países da UE (com excepção do Reino Unido, Irlanda, Bulgária, Roménia, Chipre e Croácia), mais a Suíça, Noruega, Islândia e Liechtenstein.
Um “visto gold” permitirá assim, por exemplo, aos chineses com um título de residência destes em Portugal deslocarem-se livremente por todos os países de Schengen quando, em condições normais, precisariam de obter vistos de entrada em cada um.
Os peritos europeus consideram que todos estes esquemas, sem serem exactamente ilegais, desvirtuam as regras europeias porque permitem aos “imigrantes ricos” contornar a política comum de vistos, comprando o seu direito de residência. Tanto mais, alegam, que o direito de residência resulta por definição de uma ligação efectiva do imigrado ao país em causa, sobretudo em termos de residência efectiva e de trabalho, o que não é o caso da maior parte dos esquemas de “vistos gold”.
Em Portugal, por exemplo, a lei determina que os detentores de “vistos gold” só precisam de estar fisicamente presentes no país durante 7 dias no primeiro ano, e 14 nos anos seguintes. O que significa que as condições para os imigrantes ricos são muito menos exigentes do que para os imigrantes que entram pela via “normal” e que, apesar de viverem, trabalharem e pagarem impostos no país de destino, perdem o direito de residência se se ausentarem por alguns meses.
Por todas estas razões, os “vistos gold” contrariam, para estes peritos europeus, um princípio básico do Tratado da UE, que é o da “cooperação leal” entre Estados, porque representa, no mínimo, uma entorse, à política comum de vistos e ao espírito dos acordos de Schengen.
A Comissão Europeia reconhece nas entrelinhas precisamente a mesma coisa mas insiste em lavar as mãos da questão insistindo em que se trata de uma competência dos Estados. Só que, mesmo nas áreas de competência nacional, o princípio da “cooperação leal” implica, segundo o que está estipulado logo no artigo 4º do Tratado da UE, que “os Estados-Membros facilitam à União o cumprimento da sua missão e abstêm-se de qualquer medida susceptível de pôr em perigo a realização dos objectivos da União”.
Porque é que a Comissão nunca se deu ao trabalho de regulamentar as autorizações de residência é uma questão para a qual ninguém parece ter resposta.
Por enquanto, Bruxelas só se insurgiu verdadeiramente no caso de Malta, que foi bem mais longe do que todos os outros países ao “vender” já não tanto autorizações de residência, mas a própria nacionalidade, ou cidadania.
Na minúscula ilha do Mediterrâneo, a lei permitia inicialmente a concessão imediata da nacionalidade a todos os cidadãos dispostos a transferir 1,1 milhões de euros para o país em investimentos e depósitos. Depois dos protestos vigorosos da Comissão Europeia e do Parlamento Europeu, o Governo alterou a lei para acrescentar uma obrigação de residência de um ano prévia à concessão da nacionalidade. Com este esquema, o Estado maltês espera arrecadar uma receita anual de mil milhões de euros para investimentos em infra-estruturas.
Os defensores dos vistos dourados consideram os dois casos muito diferentes, alegando que a concessão de residência é um direito temporário, enquanto a cidadania é permanente e permite aos visados não só deslocarem-se, mas instalarem-se efectivamente em qualquer país de Schengen.
Os opositores dos “vistos dourados” lembram, no entanto, que na maior parte dos países europeus, o direito de residência de cidadãos de países terceiros abre a porta à obtenção da nacionalidade ao fim de cinco ou seis anos, como é o caso em Portugal. O que significa, defendem, que a única diferença entre os “vistos gold” portugueses e a regra maltesa de concessão de cidadania é apenas uma questão de tempo.