Eles andam por aí
1- Há tácticas da extrema-esquerda e hábitos da guerrilha e da clandestinidade que jamais se esquecem. Uma dia subversivo, subversivo toda a vida. Que o diga José Manuel Durão Barroso, o protagonista do assalto da última semana a esse respeitável símbolo da arte de navegar à bolina na política que é Vítor Constâncio. Não sabemos, nem talvez interesse muito saber, por que razão quis o presidente da Comissão Europeia infligir danos de imagem ao vice-presidente do Banco Central Europeu atirando-lhe “três tiros à queima-roupa”, expressão usada por João Miguel Tavares e sublinhada por Miguel Sousa Tavares. Como não sabemos, e talvez nunca venhamos a saber, se Durão chamou três vezes Constâncio a São Bento para discutir o caso do BPN ou se tudo não passa tudo de uma inventona, o que a branca na memória de Constâncio sobre essas convocatórias deixa subentender. Não é a relação odienta entre os dois principais portugueses na eurocracia que incomoda. Incomoda o mau cheiro que se manifesta quando eles decidem revolver um caso fétido de um tempo putrefacto da vida nacional.
Para que possa sobrar para o futuro uma réstia de crença na classe política, é bom que tirem lições da nossa década perdida, que teve estes dois personagens entre os actores principais da fita. O seu relativismo, o subterfúgio a que ambos recorrem para justificar erros e penitenciar omissões é uma continuidade lógica desses tempos de irresponsabilidade que o país viveu na primeira década do século. Raramente Portugal teve tão pouco nervo, tão pouca exigência, tão pouca visão e tão pouca coragem como nos tempos em que Durão não governava e Constâncio não fiscalizava.
Um viu o país de tanga, tergiversou, recauchutou os problemas e foi para outras instâncias, certamente mais elevadas, para ajudar o país a redimir-se com a pacóvia exultação de se ter transformado na pátria do presidente da Comissão. Chegado lá e tendo de lidar com a mais grave crise financeira do país das últimas décadas, fez o que dele se suspeitava: acomodou-se, deixou a União resvalar para o directório dos mais fortes, tolerou a subversão do espírito europeu que prevaleceu durante décadas e geriu a sua reeleição sem precisar de encenar uma nova e vergonhosa Cimeira dos Açores rindo-se ao lado dos poderosos – ele até propôs as eurobonds, lembrou ao Expresso, mas “os governos não deixaram”…
Constâncio não ficou longe deste registo, agravado pela mistura explosiva que combinava lassidão com incapacidade de prever e de agir. Dizem ilustres cidadãos e ex-responsáveis pelo Banco de Portugal numa carta de recomendação ao ex-governador que não se deve tolerar que uma “confusão” ponha em causa “a competência e a honestidade de uma pessoa a quem o país muito deve”. Com a devida vénia, o país não deve nada a Vítor Constâncio. Mesmo que nada suscite o risco de dolo na sua acção, resta ainda assim a avaliação objectiva do seu legado. O caso do BPN avolumou-se sobre o seu mandato como supervisor sem que ele fosse capaz de ler os indícios do crime nem de dar murros na mesa a pedir rigor nas averiguações - para azar dele, hoje podemos saber em Portugal o que é um governador do Banco de Portugal corajoso e competente.
Vir agora um cravar punhais da memória no outro é por isso uma peça que nos remete para tempos sombrios. Com a neutralidade que o seu actual cargo exige a esvanecer-se, Durão recupera os saberes de guerrilheiro e entra a matar na trica politiqueira interna. Nada o proibirá dessa ambição. Ainda assim, a tolerância democrática não dispensa julgamentos políticos, nem estes prescindem dos valores da ética republicana. O simples facto de Durão ter sinalizado um putativo regresso com um ajuste de contas é apenas mais uma prova exuberante da craveira dos génios que Portugal um dia exportou para a Europa. A sorte os conserve por lá.
2-Houve um tempo, não muito distante, em que um departamento do Estado produzia documentos com tanto saber, lucidez e brilhantismo que até era fácil acreditar na existência de um pensamento sobre o país. Chamava-se Departamento de Prospectiva e Planeamento, era dirigido por um dos mais brilhantes portugueses das últimas décadas, José Félix Ribeiro, funcionava sob a égide do Ministério do Planeamento e deixou para a posteridade algumas das mais interessantes análises e muitas das mais sábias reflexões sobre os rumos e dilemas com que o país se confrontava. O documento esta semana apresentado pelo Governo para as infra-estruturas de alto valor acrescentado, por exemplo, segue à risca um desses documentos que o DPP produziu algures em meados dos anos de 1990.
Quando se copia, ou emula, uma ideia bem sustentada nada há a dizer. A menos que a cópia respeite apenas a forma e menospreze o conteúdo. Como foi o caso. Ao apresentar um mapa com corredores (litoral, interior, internacional norte e sul, etc.) nos quais o país investirá seis mil milhões de euros em projectos na área de transportes, o Governo cai em dois julgamentos obrigatórios. O primeiro, positivo, é o que o acusará de, finalmente, de se dispor a ter na agenda alguma coisinha de concreto que vá para lá do discurso dos cortes. O segundo, negativo, é que o faz de forma etérea, desgarrada e sem uma visão integrada sobre o que quer para o território. Só para a semana saberemos quais são as 59 obras prioritárias.
O maior mérito e o pior vício do programa é sua autoria. É bom que seja o ministério da Economia a ter em mão a definição das infra-estruturas com valor acrescentado. Oitenta e sete por cento dos portugueses estão a menos de 15 minutos de um nó de auto-estrada, Portugal tem a oitava rede de auto-estradas mais densa da OCDE, à frente de países como a Espanha, a Itália ou a Áustria, pelo não precisava de vir a Comissão Europeia dizer que não haverá um centavo para estradas. Ainda assim, a forma como todo este processo tem sido gerido mostra a falta de uma instância de planeamento que cruze economia, territórios, instituições e dinâmicas sociais.
Bruxelas deu-se conta dessa lacuna e recomendou investimentos nos transportes públicos nas zonas urbanas. Mas nada se sabe sobre as ideias que o Governo tem sobre redes de cidades, sobre pólos de competitividade, sobre estratégias regionais de desenvolvimento integrado. E não se sabe por defeito de fabrico do Governo. Acabar com o ministério do planeamento foi um erro – se a designação horrorizava a matriz liberal do Governo, era só mudar o nome. Temos agora o ministro Jorge Moreira da Silva a produzir uma nova geração de planos de ordenamento território enquanto, nas suas costas, o ministro Pires de Lima trata de colocar nesse mesmo território linhas de caminho-de-ferro ou centros intermodais. Talvez funcione. Talvez não.