1.É uma porta antiga, numa rua antiga, mar em volta. A Europa fica a hora e meia, os aviões descem como suicidas. No tempo dos barcos, África ficava mais perto. O nome da rua vem desse tempo, Quebra Costas, o número da porta tornou-se um nome, 33. Os retardatários batem, entram, viram à direita: últimos dias para ver O Amor Que Purifica e Trotoário Azul, duas fotonovelas que deram um filme, um livro e uma exposição de Lourdes Castro. Filme e livro estarão em Lisboa na primeira semana de Abril, a exposição acaba aqui, por agora. E a porta, que há um quarto de século leva a um jardim onde os gatos pulam sobre a arte contemporâna, não sabe bem como volta a abrir.
2. Porta 33: associação cultural fundada no Funchal em 1989 que entretanto se tornou galeria, residência, bolsa, editora (cruzando gerações, por aqui passaram Julião Sarmento, Pedro Cabrita Reis, Pedro Calapez, Fernanda Fragateiro, Ilda David, Alberto Carneiro, Francisco Tropa, João Penalva, José Pedro Croft, José Loureiro, Vasco Araújo, Edgar Martins, Paulo Brighenti, Ana Vieira, Pedro Proença, João Queiroz, Bárbara Assis Pacheco, João Paulo Feliciano, António Olaio, Rui Toscano ou Alexandre Estrela, mas também o Teatro Praga, Pedro Costa ou Gonçalo M. Tavares). Tudo na mesma casa onde os galeristas são os donos dos gatos e colhem uvas no telhado: Cecília Vieira de Freitas, Maurício Pestana Reis.
3. Conheci a Cecília e o Maurício há 15 anos, numa daquelas mesas de amigos em que o Manuel Hermínio Monteiro foi pródigo. O Hermínio era o editor português que dava abraços mais parecidos com os cariocas só que transmontanos, de abalar a cerimónia até aos ossos. Digo foi e era porque isto se passou dois anos antes de ele morrer, ainda a Assírio & Alvim existia como editora independente. Então, a Assírio ia lançar uma edição dos poemas do madeirense Edmundo de Bettencourt e o Hermínio fez voar um naipe de gente para o Funchal. Até hoje, sempre que penso em Enrique Vila-Matas, ele está debaixo de um tecto de colmo, antes ou depois de algumas ponchas. Fomos juntos à Lapinha do Caseiro, presépio que o bisavô de Herberto Helder arrancou a canivete de um pedaço de cedro, quadros de aldeia, anjos e animais. Não me lembro de Cecília e Maurício na visita a essa casa, mas estivemos juntos à mesa.
4. Reencontrei-os há um ano e dessa vez dormi na Porta 33, num escritório e guarda-espólio que ganha uma cama quando é preciso. Foi quando conheci o jardim suspenso, descendo em socalcos, de um telhado para outro, nas traseiras da casa. Era um fim-de-semana de tempestade, as folhas pesavam de chuva, cores reluzentes. Almoçámos com ondas a bater na janela, Cecília, Maurício, João Paulo Feliciano e eu; e jantámos, muitos, incluindo o então artista bolseiro, num restaurante que tinha só uma mesa, ou juntou todas numa, ou é do que me lembro para aquecer, porque estávamos no ponto mais frio da ilha.
5. Desta vez, os derradeiros dias da exposição coincidem com a Primavera. Cecília abre a porta antes de almoço, por acaso não há escolas em visita, a sala logo à direita está vazia. A primeira coisa que aparece é a cara de Lourdes Castro em 1969, olhos azuis exorbitantes, chapéu de palha, cachecol. Segue-se Marrocos misturado com os Beatles da fase LSD e o Tintim do Rumo à Lua, porque nesse Verão lunar Lourdes e René Bertholo acabavam de voltar de Marrocos, o ponto continental mais perto. Portanto, o cartaz do filme El Moustakbal El Moghoul faz-se acompanhar por casaco, calças e túnicas magrebinas, mas também calças psicadélicas, chapéu europeu com golfinho, o próprio Rumo à Lua e anúncios com a projecção em Paris das fotonovelas, encenadas por Lourdes, René e amigos na Madeira, entre 1969 e 1970. Subindo as escadas para o primeiro piso, há ainda bobines, slides e áudio originais, o desfecho da exposição, que foi incluindo projecções para escolas. É neste piso que o quarto onde dormi agora está na versão escritório e guarda-espólio. Cecília abre a janela, sai para o telhado a mostrar os cachos de uvas que talvez anunciem o fim, das parreiras ou do mundo. Agora as uvas nascem duas vezes por ano, e isso pode ser um último, pujante, sinal de vida, ou uma primeira extravagância climática.
6. As outras salas estão cheias de telas, reservas de 25 anos de exposições, todo um mapa da arte portuguesa. Na última, reencontro as peças cósmicas da Raquel Feliciano que vim ver em 2013, como aquele poliedro de vidro parcialmente pintado por onde é possível avistar a Via Láctea como se ela fosse um mundo interior.
7. Caminhamos por baixo das uvas e sobre o telhado de vidro que cobre o jardim térreo: centenas de espécies vivas e uma só jardineira. A meio da crónica, mandei-lhe uma mensagem para que me dissesse os nomes. Cecília respondeu: “Orquídeas, buganvília, azálias, jasmim, fetos, cornos de veado, plantas aromáticas (basílico, hortelã-pimenta, erva-cidreira, salvia, segourelha), bolmérias, cactos, sapatinhos, ensaiões, frésias, gladíolos, lírios, junquilhos, maracujás, pitangueiras, araçazeiro, aloés, morangueiros, cicas, patas de elefante, arrozinhos, brincos-de-princesa, aranha, alegra-campo, vinha. E muitos beijinhos.” A buganvília, fúcsia, flameja com banda sonora de gatos, que além de poderem saltar por todas as partes têm pontos de apoio pelo caminho, uma espécie de nós naturais engendrados por Cecília. Deus não sei, mas o amor está nos detalhes.
8. A 3 e 5 de Abril, Cecília e Maurício acompanham Lourdes Castro na Culturgest, em Lisboa, durante a exibição dos dois filmes-fotonovela, seguidos de conversas com alguns dos participantes, 45 anos depois. Apoiada ao longo dos anos por escassos dinheiros públicos (do governo regional e da câmara, agora rivais políticos), a Porta 33 está naquele apuro técnico que é a falta de dinheiro. Quando chegou para desmontar a exposição, Lourdes trouxe sete trevos de quatro folhas e alecrim. Protecção dos amigos, escreveu Cecília. Toda, nunca é demais.