Cromossoma artificial da levedura sintetizado no laboratório. E funciona

Cientistas ajudados por um batalhão de estudantes conseguiram construir de raiz, pela primeira vez, um dos cromossomas do fermento do padeiro, microrganismo cujas células são parecidas com as nossas.

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Desenho do cromossoma artificial, com as alterações assinaladas por "alfinetes", pontos brancos e zonas claras Lucy Reading-Ikkanda

O feito é considerado um passo significativo na área emergente da biologia sintética. Isto porque, até aqui, o material genético reconstituído artificialmente por outras equipas, tais como a do mediático geneticista Craig Venter (ver Nasceu a primeira forma de vida artificial, PÚBLICO de 21.05.2010), pertencia a organismos muito mais simples (ou procariotas), tais como bactérias e vírus.

“O nosso trabalho faz avançar o ponteiro da biologia sintética da teoria para a realidade”, diz Jef Boeke, da Universidade de Nova Iorque (EUA), em comunicado daquela universidade. Boeke liderou este esforço de sete anos em colaboração com colegas de outras instituições em França, Reino Unido e Estados Unidos.

Os autores sintetizaram no laboratório o cromossoma número 3 do fermento do padeiro (a levedura Saccharomyces cerevisiae), cujo genoma contém um total de 16 cromossomas, correspondentes a cerca de seis mil genes (um terço dos quais têm uma versão humana, por vezes responsável por doenças). Trata-se de um dos seres vivos mais estudados do planeta – e que, para além de ser utilizado há milénios no fabrico pão e da cerveja, serve hoje para produzir biocombustíveis e medicamentos. O genoma deste microrganismo foi sequenciado na íntegra em 1996.

A construção do cromossoma em causa passou por juntar, numa cadeia molecular, 273.871 “pares de bases” – isto é, blocos de construção da dupla hélice de ADN –, obtendo assim um cromossoma artificial um pouco mais curto do que o natural. E para isso, a equipa recrutou cerca de 60 estudantes universitários, todos eles a cursar uma cadeira intitulada “Construa um genoma” e criada pelo próprio Boeke na Universidade Johns Hopkins (EUA).

Os estudantes tinham por missão, como parte do currículo do curso, obter, a partir de versões sintéticas das bases (ou "letras") do ADN disponíveis comercialmente – e recorrendo a técnicas de biotecnologia – , troços do cromossoma 3 do fermento do padeiro com 750 a 1000 pares de bases ou mais. As razões que levaram a equipa a escolher o cromossoma 3 como alvo da primeira síntese integral no âmbito deste projecto, cujo objectivo é reconstituir artificialmente a totalidade dos 16 cromossomas da levedura, foram o facto de ser um dos mais pequenos e de ter funções relevantes para o ciclo de vida das leveduras.

O cromossoma artificial que daí resultou tem mais de 500 alterações em relação ao seu homólogo natural, explica ainda o comunicado, entre remoções de fragmentos repetidos, do chamado ADN-lixo e de certos genes “saltitões” que se sabe produzirem mutações aleatórias. Por outro lado, foram-lhe acrescentadas certas sequências genéticas extra, de forma a que os cientistas pudessem não só distinguir o original da cópia, como também apagar ou deslocar genes à vontade no cromossoma. Tudo isto foi feito recorrendo a um software especializado, com o qual os cientistas construíram virtualmente a sequência genética do novo cromossoma antes de o fazer fisicamente.

Lotaria genética

Uma vez acabado este trabalho, a primeira coisa que os cientistas fizeram – e que Boeke considera ser o mais importante avanço obtido neste trabalho – foi testar a funcionalidade do cromossoma artificial: a sua capacidade de se reproduzir fielmente em diversos meios de cultura. Para isso, introduziram esse cromossoma dentro de células de levedura. Resultado: as células com o cromossoma artificial revelaram ter um comportamento “notavelmente natural”.

A seguir, a equipa testou a resistência do cromossoma artificial a certas manipulações genéticas, “baralhando” os seus genes (graças às sequências genéticas adicionais introduzidas à partida) tal como se de um baralho de cartas se tratasse. “Podemos escolher um grupo de genes, mudar a sua ordem natural ao longo do cromossoma e construir assim milhões e milhões de baralhos [estirpes de levedura] diferentes”, diz Boeke.

“Fazer alterações num genoma é uma lotaria”, acrescenta. “Basta uma alteração errada e a célula morre. Mas nós fizemos mais de 50.000 alterações à sequência de ADN do cromossoma 3 artificial e as nossas leveduras sobreviveram. Isso é notável e mostra que o nosso cromossoma é resistente e que pode conferir novas propriedades às células de levedura. (…) Isto vai permitir-nos obter leveduras que sobrevivem melhor numa pletora de condições ambientais, tolerando, por exemplo, altas concentrações de álcool.” Ou diversas temperaturas ou níveis de acidez – ou ainda a presença de compostos que normalmente danificam o ADN.

A ideia de Boeke de envolver activamente os seus estudantes nas pesquisas fez entretanto adeptos em países como a Austrália, China, Singapura, Reino Unido e outros locais dos Estados Unidos (mais informações em http://syntheticyeast.org/), internacionalizando ainda mais o projecto de construção do genoma artificial da levedura.

O objectivo final é conseguir um dia inventar microrganismos artificiais feitos à medida e capazes de fabricar novos medicamentos e vacinas, matérias-primas alimentares ou ainda novos biocombustíveis. A síntese do cromossoma 3 da levedura, designado synIII, mostra que isso é possível. O trabalho também fornece um modelo experimental para o estudo dos genes e das suas interacções, para perceber como as redes de genes determinam os comportamentos biológicos individuais, lê-se no comunicado.

Já a seguir, a equipa de Boeke tenciona continuar a reorganizar os genes de synIII para testar as propriedades dos cromossomas obtidos e ao mesmo tempo desenvolver formas de sintetizar os outros cromossomas da levedura mais rapidamente e a menor custo.

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