“Quem és tu? O teu amigo Juan Carlos”

Foto
Adolfo Suárez Illana

O instantâneo, tirado um ano antes, em 17 de Julho, foi combinado entre o fotógrafo e filho do antigo presidente do Governo de Espanha, Adolfo Suárez Illaña, e o rei Juan Carlos. O monarca espanhol visitou o amigo na sua residência da urbanização de Somoságuas, no município madrileno de Pozuelo de Alarcón, para lhe entregar uma condecoração que lhe fora atribuída. Dado o estado de saúde de Suárez não houve publicidade do acontecimento. Suárez Illana revelou, mais tarde, os pormenores. Quando Juan Carlos se aproximou do homem com quem viveu a cumplicidade de mudar a política de Espanha, Suárez perguntou-lhe: “Quem és tu?”. Respondeu o monarca, emocionado: “O teu amigo Juan Carlos”.
Os dois saíram juntos para os jardins da moradia. O Rei abraça-o pelas costas e inclina-se em jeito de total empenhamento. O corpo de Suárez denota que se deixa levar, um sinal inequívoco de alheamento. Era a continuação da profunda ausência em que vivia há anos.

A fotografia, divulgada pela agência EFE, foi premiada em 2009 pela Fundação Ortega y Gasset, nos galardões anualmente instituídos pelo diário El País. Uma foto de costas. De pose de afecto e dor. Um abraço com muita história.

Foi em 2003, no final de um comício do seu filho – candidato do Partido Popular à Comunidade de Castela-la-Mancha –, que Adolfo Suárez manifestou os primeiros sintomas de confusão. A doença de Alzheimer foi-lhe diagnosticada depois, mas para evitar o sofrimento da família não o revelou. Só em 2005, a família anunciou o mal.

O primeiro chefe de Governo que os espanhóis não temiam sofria de Alzheimer. Já não sabia que fora chefe do Executivo de Espanha, e não conhecia ninguém. Houve comoção. Tristeza nos que têm memória. Mas no país em que se comercializam os dramas nas revistas de papel couché impôs-se o recato. Prova do respeito que à cidadania Suárez merecia, depois da tarefa ciclópica que o destino lhe reservou: desmantelar, de dentro, o regime franquista e propiciar, contra ventos, marés e maus agoiros de não poucas chancelarias ocidentais, a transição democrática. Razão pela qual é o presidente do Governo de Espanha melhor avaliado pelos seus concidadãos.

A ausência evitou-lhe o sofrimento da perda da sua filha, por cancro. O mesmo mal que anos antes lhe roubara a mulher e que o afectou profundamente. Adolfo Suárez, de figura elegante, sorriso aberto e ar de dandy, era portador do que Miguel Unamuno muitas décadas antes apelidou do sentido trágico da vida. Mas também foi senhor de uma notável determinação, ousadia e sentido de risco.

Santos Juliá, catedrático de História Social e do Pensamento Político, Prémio Nacional de História de Espanha em 2003, atribui a Suárez o papel de personagem central da transição democrática. Cumpriu um autêntico caderno de encargos que levou a Espanha para a democracia. Em apenas um ano, entre Junho de 1976 e Junho de 1977, quem fora ministro-secretário do Movimiento, o partido único de Francisco Franco, desmantelou as suas estruturas, o Tribunal de Ordem Pública, as Cortes franquistas e os sindicatos verticais, legalizou o PCE e neutralizou os ultras das Forças Armadas.

A democracia deu-lhe vitórias eleitorais, a extrema-direita atacou-o com a tentativa de golpe de Estado de 23 de Fevereiro de 1981 e os cidadãos acabaram por dar as costas ao seu partido, o CDS. Adolfo Suárez foi vítima do escárnio democrático, as terríveis e mortíferas intrigas de corredores.

Recordo a sua imagem, em 2000, no Ford Scorpio azul escuro conduzido pelo motorista, na Via dos Castillas, a radial que une o parque do oeste de Madrid a Pozuelo de Alarcón. No engarrafamento de uma rotunda é reconhecido. Às buzinadelas responde com um aceno. Só lhe faltou pronunciar o estribilho político de sempre. Sinal de compromisso e de honra: “Posso prometer e prometo”. 

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