O homem que soltou a criança em todos nós

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O cartoonista é intransigente com a sua privacidade: a sua editora americana tem instruções para distribuir à imprensa apenas um auto-retrato (este) e declinar os pedidos de outras imagens

Abandonou no auge da fama. Quando Calvin & Hobbes se convertera num fenómeno de popularidade a nível mundial, os jornais se multiplicavam a publicar a sua tira de BD, os livros vendiam aos milhões, Bill Watterson andava a convencer a distribuidora Universal Press Syndication a deixá-lo pôr ponto final nas aventuras do seu pequeno rebelde e do amigo tigre de peluche. A 31 de Dezembro de 1995, Calvin dizia para o seu compincha Hobbes que valia a pena ir explorar o mundo lá fora, para lá dos claustrofóbicos limites de uma tira de BD e da necessidade diária de ser simples, inovador, original e divertido.

E na paisagem sem contornos da neve, ambos deslizavam num trenó para não mais voltarem.

Para trás ficava uma das mais originais tiras de BD da história, que extravasara os limites do leitor de banda desenhada para se tornar parte da cultura popular do século XX. Uma obra que era tão devedora dos grandes clássicos da BD americana (de Krazy Kat, de George Herriman, a Little Nemo, de Winsor McCay, passando pelos Peanuts, de Charles M. Schulz, e o Pogo, de Walt Kelly) como da pintura — da arte em si. Aliás, foi para recuperar a energia perdida dos clássicos da banda desenhada americana que Watterson criou a sua tira.

“Não penso que a minha obra seja particularmente revolucionária, mas a banda desenhada americana andava estática e simplista, por isso, o que tentei foi recuperar parte da energia e da atracção visual que tinha nas primeiras décadas do século quando era impressa em tamanho maior”, explica ao Ípsilon, na sua primeira entrevista a um órgão de comunicação social de fora dos EUA desde que pôs fim a Calvin & Hobbes. A ideia da tira formatada nos seus eternos quadradinhos com a piada no final não tinha interesse para quem sempre encarou “a banda desenhada como uma verdadeira arte” e sempre preferiu mais o lado do desenho do que o da escrita. E que cita como influência o trabalho dos expressionistas alemães, as xilogravuras do Die Brücke, de Egon Schiele e Lyonel Feininger — este também autor de BD.

“Adoro a exuberância da banda desenhada, o seu golpe visual e a sua versatilidade incrível para escrever. Foi isso que me fez querer ser um cartoonista e estava contente por poder partilhar o meu entusiasmo”, diz-nos Watterson. Quando o entusiasmo desapareceu, quando percebeu, ao fim de 3.150 tiras, que já não podia dar às personagens mais do que a repetição de fórmulas ou de ideias, tapou os frascos de tinta e foi explorar o mundo (que é como quem diz, foi pintar paisagens e pescar), para nunca mais ninguém o ver.



O J.D. Salinger dos comics

E se houve quem chorasse pelo fim das personagens que se haviam tornado parte do quotidiano, outros — muitos — aplaudiram a integridade artística, a resistência ao abastardamento da criação. Muitos explicam a popularidade de Calvin & Hobbes ainda hoje, quase duas décadas depois do seu fim, com essa resistência a deixar que a criação se transformasse em commodity, em plataforma de venda de merchandising. Outros estão convictos de que a forma como Bill Watterson lidou com a fama o transformou em personagem de culto.

Explica muita coisa que um autor refira a palavra “depressão” quando fala sobre a popularidade das suas personagens, cujas tiras chegaram a aparecer em 2.400 publicações de todo o mundo. A caracterização foi feita durante uma entrevista de 1989 ao seu amigo Richard Weston. Uma entrevista que, segundo Watterson, tinha sido originalmente feita para a Rolling Stone e acabou publicada pelo The Comics Journal, para o qual desenhou também a capa.

E dar o ano de uma entrevista para a identificar, no caso de Watterson, é informação precisa — depois da de 1989 há a de 2005, em que respondeu a 15 perguntas de leitores, a de 2010 ao The Plain Dealer, o principal diário de Cleveland, a de 2013 à The Mental Floss e a do PÚBLICO este ano. O cartoonista é intransigente com a sua privacidade. Nas poucas vezes em que aceitou responder a questões, fê-lo por correio electrónico, limitando as mesmas em número e assunto. Fotografias menos ainda: a editora americana tem instruções para distribuir à imprensa apenas um auto-retrato (aquele que se vê nestas páginas) e declinar os pedidos de outras imagens.

Não admira que o seu afastamento da sociedade mediática lhe valha a identificação com outro célebre recluso das artes e lhe chamem “J.D. Salinger dos comics”. A revista Time chegou a incluí-lo numa lista dos “dez mais famosos reclusos”, ao lado de Salinger e de outros ilustres fóbicos da fama: Howard Hughes, Greta Garbo, Harper Lee, Emily Dickinson, Syd Barrett, Thomas Pynchon, Dave Chapelle e Marcel Proust.

Watterson prefere deixar falar a obra, ser ela a explicá-lo. Prestar-se ao jogo de desvendar a sua biografia com fins mediáticos contradiria a sua forma de encarar a BD e a arte. Mostrar as pinturas que tem feito desde então, falar de si, do que pensa, mostrar a casa, a mulher, os amigos, dar a opinião sobre isto e aquilo sempre foi incompatível com as suas ideias. Ainda para mais quando sabe que, devido à popularidade de Calvin & Hobbes, tudo o que fizer ou disser amplifica-se.

“[Sempre] tentei exprimir os meus pensamentos de forma honesta”, explica ao Ípsilon. Daí que não pudesse seguir com as suas personagens só por causa da pressão, da distribuidora ou do público, quando estava convicto do esgotamento da tira que fazia diariamente desde 18 de Novembro de 1985 (com excepção de um interregno sabático de nove meses em 1991, por se sentir esgotado).



E se aparecesse um Hobbes de peluche?

“Para mim, o Calvin & Hobbes está completo, por isso nunca tentei voltar atrás.” Passados todos estes anos, e apesar das pressões, continua fiel à sua decisão. Mas, então, porque é que nunca tentou criar outra tira de banda desenhada, outras personagens? “Não pus isso de lado, mas até agora ainda não encontrei uma forma de voltar.”

A ética de Watterson, feita de convicções fortes, soube resistir com muito esforço ao salto de Calvin & Hobbes para outros suportes, apesar de ao distribuir a sua obra através de syndication (contrato de distribuição) ter abdicado de grande parte do controlo da mesma — chegando a correr o risco, com o seu braço-de-ferro, de ser despedido e de ver as suas personagens continuadas por outro cartoonista ou cartoonistas. E se ainda chegou a ponderar a hipótese de deixar que a tira fosse adaptada ao cinema de animação, porque podia ultrapassar os limites que o desenho em papel impõe, o merchandising sempre foi algo a que se opôs.

“Calvin & Hobbes foi desenhado para ser uma tira de banda desenhada e sempre me senti completamente satisfeito e realizado a desenhar uma. O merchandising não trazia nada que me interessasse. Adaptar uma tira de banda desenhada a um novo meio implica muitos compromissos e nunca encontrei nenhuma razão para aceitar esses compromissos. O merchandising nunca foi uma tentação”, garante.

Basta imaginar o estrago que traria ao universo criado por Watterson se um Hobbes de peluche aparecesse a ser comercializado nas lojas de brinquedos. Se o autor se deu ao trabalho de manter a ambiguidade quanto à natureza de Hobbes — se é um amigo imaginário que Calvin criou ou se é realmente um tigre falante que mais ninguém vê além do seu amigo humano —, fazer dele um boneco seria abrir um rombo no mundo que criou para esse puto reguila de seis anos com nome de reformador protestante (John Calvin) e para o seu amigo tigre com nome de filósofo (John Hobbes). Seria quebrar o encanto. Para o crítico e historiador Pedro Moura, a recusa de Watterson em transformar a sua arte em produto, rejeitando o merchandising das personagens e as adaptações, e o facto de se ter “isolado após o término da série, aumentam o factor autoral de uma obra que tinha todos os ingredientes para vir a tornar-se mais um produto”.

Também isso ajuda a perceber a admiração dos 1.496 desenhadores e argumentistas profissionais que votaram em Watterson para o Grande Prémio do 41.º Festival Internacional de Banda Desenhada de Angoulême, este ano. Um facto que apanhou o cartoonista de surpresa — não só pelo prémio de carreira, também por desconhecer o festival, apesar de ser o maior e mais importante do seu género na Europa.

“Sinceramente, não sigo essas coisas, pelo que as pessoas tiveram de me explicar o que tinha ganho. É uma grande surpresa ganhar um prémio depois de tanto tempo sem trabalhar, mas, logicamente, estou muito lisonjeado pelo facto de os artistas europeus terem decidido homenagear o meu trabalho. É uma coisa agradável que caiu do céu.”

Para a direcção do festival francês, a escolha de Watterson para o prémio de carreira, em detrimento do japonês Katsuhiro Otomo (criador de Akira) e do argumentista britânico Alan Moore (Watchmen, V de Vingança), é uma dor de cabeça. Normalmente, o vencedor do Grande Prémio desenha o cartaz da edição do ano seguinte e preside ao júri que escolhe os melhores álbuns de BD do ano. Sem esperança de conseguir embarcar o eremita de Cleveland, Ohio, numa viagem transatlântica para quatro dias de atenções públicas em França, a direcção do festival ver-se-á obrigada a arranjar outro nome para preencher o lugar vazio em 2015.

Mesmo assim, não será um vazio tão grande nem tão irreparável como o que Watterson deixou ao pôr um ponto final em Calvin & Hobbes para se retirar para o Ohio e pintar aguarelas: “Se deixei um vazio nas páginas da banda desenhada, espero que os jovens cartoonistas vejam nisso um convite para mostrar uma coisa nova ao mundo”, diz.

Sem querer preencher o vazio na BD, nem nas páginas da imprensa, onde a sua ausência parece fazer mais sentido do que muitas entrevistas dadas por outros, vai cedendo aqui e ali. E por esta altura, diríamos que a sua relação com os média está mais flexível. Nos últimos tempos, às entrevistas à Mental Floss e ao PÚBLICO, juntam-se o depoimento e o cartaz para o documentário Stripped e declarações ao Washington Post a explicar porque razão resolveu voltar a desenhar um cartoon ao fim de 19 anos. Frederick Schroeder e Dave Kellett, realizadores e produtores de Stripped — documentário sobre banda desenhada que estará disponível a partir de 1 de Abril no iTunes —, nem queriam acreditar nos ventos da fortuna: além de terem gravado pela primeira vez a voz de Watterson a falar sobre BD (não permitiu imagens), conseguiram que lhes desenhasse uma imagem para o cartaz. Aproveitaram o acontecimento em termos de marketing e tanto no site como em todos os outros materiais de promoção pode ler-se num splash: “Cartaz de Bill Watterson de Calvin & Hobbes... o seu primeiro cartoon em 19 anos!”

Aquilo que Jonathan H. Liu escreveu na Wired sobre Stripped, quando os seus produtores procuravam no ano passado juntar a verba necessária para acabar o filme através de crowdfunding, vale para esta entrevista ao Ípsilon: “Como Stripped conseguiu obter uma entrevista com Watterson é um mistério para mim, mas vale a pena apoiar o projecto para ver o que ele tem a dizer.”

Em 2009, o jornalista Nevin Martell publicou nos EUA uma biografia de Watterson que é na sua essência o relato de uma jornada em busca de uma conversa com o biografado. Looking for Calvin and Hobbes: The Unconventional Story of Bill Watterson and His Revolutionary Comic Strip está escrito como uma história de suspense: será que o sujeito da obra se deixará ver e aceitará falar? E acaba com a mesma resposta recebida em 2005 por Gene Weingarten, jornalista do Washington Post, humorista e co-autor da tira de BD Barney & Clyde: nada. Weingarten até lhe enviou um presente de charme: uma primeira edição de Barnaby, criado por Crockett Johnson, clássico da BD americana e uma das influências do criador de Calvin. Em vão.

Uma coisa é certa, o pasmo do jornalista frente à entrevista concedida é em tudo ou nada idêntico ao de Watterson perante o sucesso das aventuras dessa criança travessa de seis anos e do seu tigre num subúrbio não identificado do Midwest americano: mais de 30 milhões de livros vendidos no mundo e ainda hoje a ser publicado em muitos jornais do planeta (o PÚBLICO deixou de o fazer em 2008). Um êxito que perdura sem esmorecer: uma aguarela original de Calvin e Hobbes sentados a dormir debaixo de uma árvore foi leiloada por mais de 107 mil dólares em 2012.

“Não entendo muito bem a popularidade da tira. Obviamente, há aqui uma certa dose de sorte”, explica Watterson ao Ípsilon. “Estava apenas a tentar desenhar o género de tira que queria ler. O meu objectivo era surpreender-me, falar de coisas que me interessavam e ver se conseguia fazer rir a minha mulher. Se conseguia alcançar uma dessas coisas, enviava-a e fazia figas. Seguramente não estava à espera deste tipo de resposta, por isso é um bocado difícil para mim explicá-lo”, acrescenta o autor que nasceu em 1958 em Washington mas cresceu numa pequena cidade do Ohio, Chagrin Falls. Tinha seis anos quando a família se mudou para esse subúrbio de Cleveland, a mesma idade do protagonista da sua banda desenhada.

Sinal de que a popularidade ainda existe e poderá ser aumentada com novas gerações de leitores, Guilherme Valente, responsável por editar Calvin & Hobbes em Portugal e por ter convencido o PÚBLICO a publicá-lo todos os dias, vai reeditar nove livros até Setembro — já saíram O Essencial de Calvin & Hobbes e O Indispensável de Calvin & Hobbes, este mês cabe a vez a Parabéns Calvin & Hobbes. Para que novas gerações de leitores se identifiquem com Calvin, como Joel Allen Schroeder, realizador do documentário Dear Mr. Watterson, estreado no ano passado nos EUA. Schroeder preferiu manter a distância relativamente ao autor, respeitando o seu desejo de privacidade, concentrando-se na busca de uma explicação para o sucesso de Calvin & Hobbes e a sua influência na cultura popular em geral e nos comics em particular através de autores, críticos, curadores de museus, arquivistas e simples admiradores.

O documentário começa com uma confissão do realizador: “Eu queria ser o Calvin. Eu sentia que era o Calvin. Ambos tínhamos seis anos em 1985. Gostávamos de tigres, do espaço, de brincar na neve. Tínhamos pais que gostavam de moldar o carácter.” Joe Wos, director executivo do Toonseum — Pittsburgh Museum of Cartoon Art, diz no mesmo documentário: Calvin é “cada um de nós”. E talvez seja esse o segredo do sucesso.

Watterson, não sendo muito dado a psicologizar as personagens, confessava em 1989: “Eu não teria o comportamento de Calvin mas há uma parte de mim que se comportaria dessa maneira se não me preocupasse com mais ninguém.” Calvin é o lado rebelde de cada um de nós enquanto crianças e a criança em cada um de nós quando nos tornamos adultos. Ou a imaginação em estado puro, como nessa frase que se lê numa das tiras: “Um dia, Calvin acorda e descobre que não é afectado pela força da gravidade.” 

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