Ana Jotta, "a mais jovem das artistas portuguesas", ganhou o Grande Prémio EDP
Aos 68 anos, a artista é a sexta vencedora do mais relevante prémio de artes plásticas nacional. Foi escolhida por unanimidade, uma surpresa para toda a gente, a começar pelo júri.
Quando escreveu a Biografia Alternativa de Ana Jotta para o catálogo da exposição retrospectiva da artista, em 2005, na Casa de Serralves, a dada altura, Gaëtan Lampo foi buscar a ideia de um labirinto: Ana Jotta, nem pintora, nem desenhadora, nem escultora; tudo isso, mas, sobretudo, uma especialista em jogos de claro-escuro, aproximação e fuga, sedução e despiste, exposição total e ocultação absoluta.
Aos 68 anos, aquela que o comissário Ricardo Nicolau, adjunto da direcção do Museu de Serralves, definiu um dia como "a mais jovem das artistas portuguesas" é a sexta vencedora do Grande Prémio EDP/Arte 2013, escolhida por unanimidade. Uma surpresa para toda a gente, a começar pelo próprio júri, desta vez constituído pelo presidente do conselho de administração executivo da EDP António Mexia; o filósofo José Gil; o curador e crítico de arte francês Frédéric Paul; a historiadora de arte, crítica e comissária espanhola Gloria Moure; a professora e ex-directora do Museu de Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado Helena Barranha; o subdirector artístico do Reina Sofia e ex-director do Museu de Serralves João Fernandes; e o historiador de arte e curador João Pinharanda, programador cultural da Fundação EDP.
"Começámos, como é habitual, com um leque de nomes expectáveis. Depois surgiu este nome inesperado que se foi tornando inevitável", disse ao PÚBLICO João Pinharanda pouco depois do fim da reunião do júri. Nessa reunião, conta Pinharanda, "a certa altura alguém disse que não valia a pena votar uma lista final de nomes: a escolha era evidente de tão pouco evidente".
"Era um prémio que todos tínhamos na cabeça, mas que nunca esperámos que acontecesse", acrescenta João Fernandes. "Foi para todos uma agradável surpresa quando reuniu consenso."
O que faz de Ana Jotta (n. Lisboa, 1946) uma escolha tão pouco óbvia para o mais relevante prémio de artes plásticas português? O carácter da sua obra, ele próprio sempre surpreendente e desconcertante: "[Na obra de Ana Jotta] a coerência está na multiplicidade. Não tem uma unidade – nela, a unidade é de outro tipo: a coerência está na singularidade diferencial [de cada trabalho]", diz José Gil.
A arte de Ana Jotta não imita a vida, é uma manifestação de um modo singular de viver, escreveu em tempos João Fernandes: "Referências da história da arte misturam-se com referências da cultura popular do século XX numa permanente reciclagem." Velázquez, Mondrian, Paul Klee, Edward Hopper, Mike Kelley, Stuart Carvalhais, Tom, Vilhena, Bill Watterson, imagens de livros de colorir, calendários, pintura vernácula… Os processos de Ana Jotta começam com a artista como respigadora das mais diferentes realidades plásticas para culminar num trabalho de "samplagem" derrisória em que os mais diferentes elementos ganham nova vida.
Ana Jotta pinta, desenha e usa tudo o que vai vendo, lendo, experimentando e até roubando: "A pintura e o desenho são, precisamente, para ela, um território de iconoclastia e dessacralização", escreveu ainda João Fernandes que, na sexta-feira, apontava "a condição libertária" de uma obra "contra todos os estilos", "feita de avatares".
São qualidades marcantes também para Frédéric Paul, que fala numa "impertinência" e num humor em que o antigo, o novo e o kitsch se misturam num trabalho "muito livre": "Tem a particularidade de tocar a arte popular mas também as referências mais eruditas. Ela não está entre as duas linguagens: resolve ambas."
Nesta obra "muito profunda e crítica, no sentido da sua independência", ao recuperar, modificar e recontextualizar objectos e referências visuais, Ana Jotta "fala do cliché, mas desloca-o para um grande sentido", diz o crítico francês: "A Ana é tão livre… Quem compensar melhor do que esta artista tão livre?"
Hoje, a artista, que se junta a uma lista de contemplados de que fazem parte Lourdes Castro (2000), Mário Cesariny (2002), Álvaro Lapa (2004), Eduardo Batarda (2007) e Jorge Molder (2010), falava também da sua surpresa: "Estou embasbacada de admiração e prazer."
Derrisória – sempre –, explicou ter percebido estar afinal enganada ao achar que continuava a ser "um bocadinho marginal": "Pelos vistos, já estou integrada. Nunca me passaria pela cabeça, mas acho que mereço."
Parte dessa "integração" passa pela forma como, em anos recentes, a sua obra foi assumida como referência e modelo por um número cada vez maior de jovens artistas portugueses, acabando por se tornar, como diz João Pinharanda, "num farol ou guia para uma determinada geração". Lidando com a linguagem "de uma forma sempre inesperada, sempre imprevisível", Ana Jotta, diz ainda Pinharanda, "chama a atenção para coisas fora de foco" — exactamente como grande parte do arranque do século XXI.
Apropriação, descontextualização, transformação, subversão: é disto que é feita grande parte da contemporaneidade; é disso que tem sido feita a obra de Anna Jotta. E talvez seja isso, esse delapidar e acumular heteróclito e voluntarioso de géneros e estilos sem reverência a nenhum, mas com reverência a todos, que a foram tornando nesse "farol".
Outros conceitos ligados ao seu trabalho, eminentemente associativo: por exemplo, o de apagamento da autoria, lente através da qual a sua obra tem sido mais frequentemente lida.
Num texto sobre a artista, Ricardo Nicolau, um dos seus cúmplices mais próximos, explicou como Jotta se escapa sempre pelas fissuras do que se tem entendido como sendo a "figura do autor", nomeadamente como agente definidor de "um certo campo de coerência conceptual ou teórica". Escapa, "vestindo um scramble suit ou um disfarce de dominó", diz Ricardo Nicolau, que aproxima a estratégia da artista à concepção de temporalidade vigente na Antiguidade Clássica, qualquer coisa ligada a uma noção de circularidade, sem princípio, meio nem fim, com tudo sujeito às leis de um eterno-retorno.
A propósito das duas exposições que actualmente tem em Lisboa — A Conclusão da Precedente, na Culturgest, e Deserto Vermelho, na Galeria Miguel Nabinho —, a artista explicou ao suplemento Ípsilon desta semana: "Sou uma pintora. Acontece que muitas vezes não me consigo reduzir à chateza da pintura bidimensional e é-me mais fácil trabalhar com volumes." No mesmo raciocionio, Jotta falou também na dimensão de irracionalidade que acredita ser inerente à obra de arte: "[A arte] é feitiçaria pura ou uma espécie de número de ilusionismo. Uma ilusão que serve para chamar a atenção das pessoas para o que têm à frente do seu nariz."
Será para preservar essa aura mágica que a artista resiste a falar sobre as suas exposições: "As coisas são para ver e não para ser ditas. O trabalho do artista é físico e manual e as coisas que faz falam por si. É verdade que as conversas tornam as coisas mais fáceis, mas os objectos são visuais e as pessoas têm é que os ir ver."
O Grande Prémio EDP/Arte, no valor de 50 mil euros e actualmente de realização trienal, prevê a realização de uma exposição do vencedor. A de Jorge Molder foi já este ano no Museu do Chiado e na Fundação EDP. A de Ana Jotta não tem ainda data marcada.
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Notícia corrigida a 23 de Março: Ana Jotta é a sexta vencedora do prémio