A nossa democracia

O dr. Cavaco e o dr. Passos Coelho deviam pensar duas vezes no que fazem.

Será possível com os 20 ou 30 anos de “austeridade”, ou seja, de empobrecimento, que do alto da sua sapiência o dr. Cavaco nos prometeu, conservar um regime apesar de tudo benigno e tolerável? Ou, se uma tradição já velha prevalecer, virá agora um período de violência e desordem, a que uma espécie qualquer de autoritarismo tarde ou cedo acabará por pôr fim perante o alívio e o júbilo dos portugueses?

A dúvida é lógica e até prudente. Tanto mais que a “Europa” dos fundadores, que foi a esperança e o sonho de três gerações de ingénuos, manifestamente se desagrega e abandona os princípios que desde o começo tinham sido os seus: os direitos do homem, o Estado Social e a supremacia da lei. Como iremos nós, sem a “solidariedade” e o apoio de Bruxelas, resistir às forças que de dentro e de fora promovem ou assanham o nosso descontentamento geral e cada vez mais dividem o país? Não existem hábitos de tolerância e de compromisso, não há instituições que inspirem o respeito da maioria da população, não há uma classe dirigente respeitável e respeitada. Nem sequer há uma razão maior para um patriotismo indiscutível e partilhado. Sem nenhum fundamento sólido, Portugal anda de facto à mercê das circunstâncias.

Pior: os motivos para o caos, que são simultaneamente aos motivos para a tirania, não param de aumentar. A corrupção cresce e a justiça persiste na sua incompetência e lentidão. O Estado passa por couto privado do privilégio e dos “negócios”. Os políticos ganharam uma fama (com frequência, merecida) de carreirismo e desonestidade. A autoridade da “inteligência” desapareceu. E a própria Igreja desistiu ruidosamente do século. Isto é um convite a um aventureiro ou bando de aventureiros para se apoderarem e se entrincheirarem no poder. Por enquanto, essa catástrofe ainda anda longe. Mas, com a rapidez da mudança num mundo fluido e imprevisível, não admira que amanhã bata às portas da cidade. O dr. Cavaco e o dr. Passos Coelho deviam pensar duas vezes no que fazem.

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