Baraa espera que o pai derrote Assad para voltar à Síria

As chegadas à Jordânia voltaram a aumentar nas últimas semanas. Já nem todos os sírios que passam a fronteira fogem dos combates, alguns vêm em busca de comida. A guerra faz três anos.

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A guerra na Síria já terá feito mais de 146 mil mortos JM LOPEZ/AFP

O pai de Baraa está na Síria, “é um dos líderes da revolta” na província de Deraa, a primeira a manifestar-se, em 2011. “Era militar e desertou, foi dos primeiros”, conta a jovem. Baraa está em Zaatari, campo de refugiados gigante, no Norte da Jordânia, tão perto da fronteira que num dia limpo se avista Deraa daqui. Veio para que Ahmad pudesse nascer.

“Perdi um bebé em Dezembro de 2011. Um rapaz. Tinha quatro dias, morreu na incubadora do hospital sem oxigénio. Não havia electricidade.” Agora, vai ser tudo diferente.

Zaatari não é a Síria. A caravana que Baraa partilha com o marido e com a filha é bem diferente da casa de Sheikh Maskin, a vila onde viviam, não longe do resto da família. Mas em Zaatari não falta electricidade, nem comida, nem cuidados médicos.

Depois do parto, o boletim de consultas que Baraa segura na mão vai ser o boletim de vacinas de Ahmad e ela vai trazê-lo às consultas, no início aqui mesmo, na clínica montada pelo Fundo para a População da ONU (UNFPA) e pela Jordanian Health Aid Society. Há um hospital em Zaatari, e os partos difíceis acontecem fora do campo, mas só aqui, nesta clínica montada em caravanas, nascem 100 bebés por semana.

A maioria dos perto de 100 mil habitantes de Zaatari – é o segundo maior campo de refugiados do mundo – veio de Deraa. Faz sentido, é a província que fica logo ali. Mas as chegadas a Zaatari contam igualmente a história do que se vai passando do lado de lá da fronteira. Combates, mas também escolas fechadas, hospitais sem electricidade, fome.

“Nota-se a diferença. Os que chegam agora atravessam a fronteira fisicamente deteriorados, muito débeis, com sintomas graves de malnutrição”, diz Aoife McDonnel, porta-voz do Alto Comissariado da ONU para os Refugiados (ACNUR) no campo. Agora, muitos vêm de Homs, a cidade que já foi a capital da revolta e depois foi castigada por isso, de onde os primeiros civis puderam sair em Fevereiro, após um cerco de 18 meses, e das áreas rurais em redor de Damasco.

Maria Rashid, 23 anos, chegou a Zaatari há cinco meses. Estava grávida, precisava de comida. Em Ghutta, região dos subúrbios de Damasco alvo do ataque químico de Agosto, não havia quase nada. “Estamos cercados e a comida era muito pouca. Pensei que não podia ter o meu bebé assim”, diz, sentada na cama, nas pernas Ossama, embrulhado numa manta turca azul, nasceu ainda nem há cinco horas.

A vida em Ghutta não era fácil quando Maria saiu de lá, mas ainda ficou pior. “Agora não há nada, comem a relva do chão”, diz. “Os meus pais querem sair, mas não conseguem, o cerco está mais apertado, há mais combates. A última vez que telefonei à minha mãe ela estava a chorar, dizia que quer sair, mas sempre que tenta há soldados… O que fazer?”

Maria e o marido gastaram tudo o que tinham para chegar à Jordânia. “Foi caro, pagámos vários transportes.” Com ela grávida, uma menina de seis anos, um menino de quatro, não pode ter sido viagem fácil. “Demorámos três dias. Sofri muito. Senti que vi a morte e voltei.”

À procura de comida                                                   
Foi caro e foi difícil, mas foi o melhor que fizeram. “Lá tudo é possível. O irmão mais novo do meu marido morreu há uma semana. Saiu de casa à procura de comida e foi atingido por uma bala”, conta Maria. Depois, fala do primo do marido, que também morreu, dos três cunhados presos: “Um há dois anos, não sabemos nada dele."

Aqui, Maria sente-se segura. “A minha filha já vai à escola, está no primeiro ano, e o meu marido trabalha, transporta mercadorias para os donos das lojas do campo”, diz.

Não há sírio entre os 100 mil de Zaatari sem histórias de morte para contar. Passaram três anos desde que o Governo de Bashar al-Assad prendeu e torturou uns miúdos de Deraa que tinham escrito “o povo quer a queda do regime” na parede da escola. A população da cidade com o mesmo nome da província foi a primeira a sair à rua. Ainda era Março e já o pai da jovem Baraa desertava, por se recusar a disparar contra vizinhos que se manifestavam sem armas, nem violência. Baraa ainda sorri quando fala da revolução – nem todos os sírios conseguem.

Rihab está em Zaatari desde o início de 2013. Fugiu de Damasco, a grande capital onde há bairros que quase escaparam à guerra. “Houve uma bomba na escola onde os meus filhos estudavam. Fiquei muito abalada, não aguentei mais. Dois colegas do meu filho morreram”, diz.

Agora, com 30 anos, Rihab está grávida da terceira criança. No campo, tenta que os filhos tenham uma vida tranquila, normal, mas não tem sido fácil. Marwan, oito anos, Aya, sete. “A minha filha vai à escola e já fez amigos. O meu filho não vai, não consigo convencê-lo. Fala muito pouco com as pessoas, não era assim antes, fechou-se.”

Enquanto espera que a chamem para a consulta – “Venho todos os meses” –, Rihab está à conversa com Imad, outra jovem que fugiu de Damasco. “Tão bonita a nossa cidade, tão diferente disto”, diz Imad, que não está grávida, mas vem muitas vezes à clínica falar com as mulheres que esperam para serem vistas pela médica. Em Zaatari só tem o marido, que trabalha, como segurança numa das escolas da Unicef. “Sinto-me sozinha.”

Tanta desgraça
Não é preciso perguntar a Rihab e a Imad o que é que elas pensam hoje da revolução. São as próprias, depois de uns minutos a trocarem recordações de Damasco, que decidem anunciá-lo. “Preferia que não tivesse acontecido”, diz Rihab. “Sim, tanta desgraça. Não valeu de nada”, acrescenta Imad.

As desgraças continuam. Os mortos que a ONU já não conta – parou aos 100 mil, em Julho do ano passado, por razões de segurança – e que, nas contas da ONG síria Observatório dos Direitos Humanos, já são mais de 146 mil, os milhares de desaparecidos, os quase 9 milhões de deslocados e refugiados (na Jordânia há 600 mil sírios registados pelo ACNUR), as 5,5 milhões de crianças que a Unicef diz precisarem de assistência humanitária, dentro e fora da Síria…

Os números dos que entram todos os dias na Jordânia subiram nas últimas semanas. São entre 800 e 900 agora, todas as noites, quando antes eram 300. Podiam ser mais, estes são os que os jordanos deixam passar. Responsáveis da Comissão Europeia em Amã estimam que haja umas 100 mil pessoas, vindas de todo o país, à espera para poder atravessar esta fronteira.

Baraa discorda de Rihab e de Imad. “Quando começámos a manifestar-nos, ficámos felizes. Ver as pessoas sem medo, pela primeira vez, ouvir tantas vozes a pedir dignidade e liberdade, sentimo-nos vivos de outra maneira”, diz. “Temos de vencer, não há outro caminho. É para isso que o meu pai continua a lutar. Para os meus filhos crescerem numa Síria diferente, com orgulho neles e no seu país.”

O PÚBLICO esteve na Jordânia a convite do European Journalism Centre

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