Na ópera havia Gérard Mortier e depois havia os outros
O mais importante e influente director de ópera do século XX morreu aos 70 anos em Bruxelas. Polémico, entusiasmado, génio irascível, visionário. Um homem que procurava o silêncio entre as notas.
“Aos artistas caberá descobrir, a mim caber-me-á tornar as suas ideias possíveis”. Seria um belíssimo epitáfio não fosse a dificuldade em acreditar num Gérard Mortier generoso, disponível, que não quisesse levar a sua avante. Em Janeiro, francamente debilitado, era vê-lo entrar no Teatro Real, em Madrid, para a estreia da última encomenda, uma ópera a partir do conto de Annie Prouxl, Brokeback Mountain, para perceber que a força das suas convicções suplantava qualquer fragilidade.
Mortier morreu em Bruxelas neste domingo, depois de não ter resistido a um cancro no pâncreas que lhe havia sido diagnosticado em Maio passado, mas nem isso o fez ceder na exigência que tinha para com as suas profundas crenças. Até ao fim quis controlar o destino do Teatro Real, assegurando que a nova direcção lhe seria próxima. Perdeu essa batalha mas, em comunicado, o Teatro Real reconhecia “o impulso significativo para o panorama cultural e operático espanhol, que colocara o Teatro Real como uma referência no contexto lírico internacional”.
Para Mortier, e ao longo dos anos, apenas uma coisa importava: reconhecer e reconstruir permanentemente "o poder concreto que a ópera tem". Em entrevista ao PÚBLICO, em 2012, dizia que a luta era contra “o triunfo do consumismo [onde] a arte evoluiu para uma cultura do entretenimento, retirando à fruição de um espectáculo de ópera a sua dimensão de questionamento da sociedade".
Os cognomes nunca bastaram para resumir o modo como se envolveu no destino dos teatros. O jornal La Libre Belgique chamou-lhe, em obituário, “o construtor de catedrais” : para falar de como Mortier transformou as cidades de Bruxelas (La Monnaie, 1981-1991), Salzburgo (direcção do festival, 1992-2001), Ruhr (Trienal de Rhur, 2002-2004), Paris (Ópera, 2004-2009), Nova Iorque (New York City Opera, 2009-10), e, por fim, Madrid (Teatro Real, 2011-2013), em muito mais do que capitais de países com teatros de ópera. Mortier transformou esses teatros em pontos nevrálgicos de uma ideia da ópera como instrumento de implicação social.
Stéphane Lissner, director-geral do Scala de Milão, citado pelo Le Monde, dizia que Mortier foi “o dramaturgo da sua paixão”, em referência ao título de um livro que publicou em 2009. “Defensor de uma arte lírica plenamente inscrita no século XX e depois no século XXI, ansioso por inscrever a sua visão artística na vida da cidade, Gérard Mortier soube combater todos os conservadorismos, as rotinas e as tradições no que estas têm de mais retrógrado”.
Mortier acreditava que a ópera era uma arte popular, mas popular porque devia “falar sobre a realidade”. “Quem quer reduzir a ópera a um fait-divers quer, no fundo, controlar o seu sentido e tem medo de crescer. Como espectador, logo, como cidadão. Os espectadores que não o fazem, vivem num mundo difícil, do qual querem guardar valores mas, ao mesmo tempo, reduzi-los a uma simplificação. E a simplificação, sabemo-lo bem, está sempre do lado dos fascismos. Isso não é de direita nem de esquerda, tem a ver com autoritarismos ideológicos que são contrários à elevação que as partituras pedem, mesmo as que foram escritas a partir de realidades políticas e sociais concretas".
Será então por isso que o Le Monde o apelidou de “o Dom Quixote belga” recordando o modo como se envolvia em querelas políticas e pretendia combater moinhos de conservadorismo, nunca deixando de se assumir, ele próprio, como um conservador. “Sim, não sou um avant-guardista", diria ao PÚBLICO em 2012. Mas o conservadorismo de Mortier era de outra ordem. "Na ópera, as pessoas gostam de acreditar na renovação, corrijo, no reencontro com valores antigos. Será por isso que existem tão poucas criações contemporâneas". Mortier acreditava na transformação vinda de dentro e, sobretudo, na ética e na exigência, o que implicava um acompanhamento até ao final das suas escolhas.
Começou tudo na Flauta Mágica, de Mozart, acompanhado pela mãe, aos onze anos, que haveria de se tornar no seu compositor de eleição. Curiosa escolha presciente, afinal, que o perseguiria ao longo de um percurso que acreditava, como disse Mozart, que “a música não se encontra nas notas, mas no silêncio entre elas”. Uma questão de compromisso. O cineasta Michael Haneke, a quem Mortier confiou Cosi fan Tutte, em 2012, falava, ao El País, “de uma seriedade verdadeira que não é comum na ópera”. Tê-lo-á, certamente, aprendido na recusa da autocracia imposta por aquele que o antecedeu na direcção do Festival de Salzburgo, o maestro Herbert von Karajan. Recordava o Le Monde que o festival, dirigido com austeridade desde 1956, viu chegar “uma política inovadora, impondo um conjunto importante de compositores do século XX, bem como inúmeras criações, defendidas em oposição às tutelas e, com o tempo, contra a força da direita xenófoba austríaca”.
O que Mortier tinha era outra coisa: “génio”, disse o Le Monde. “O génio deste homem culto, poliglota, afável e sedutor, que sabia, ao mesmo tempo, ser ácido, soube insuflar de vida a ópera”.
Foi com ele que Luc Bondy, Patrice Chéreau, Peter Sellars, Klaus-Marie Grüber, Herbert Wernicke experimentaram modos de composição e encenação que abririam as portas a um modo de olhar para a ópera que resgatava à pompa e ao fausto a dimensão de risco e de inventividade.
Mortier não caminhava sozinho nesse processo de transformação, mas era comum imaginá-lo profundamente isolado em escolhas que devolviam à ópera a sua génese multidisciplinar. Disse Robert Wilson: "Tinha um compromisso incrível com o seu trabalho. Fazia o que ninguém tinha feito antes. Corria riscos. Interessava-se por literatura, teatro, artes plásticas, música. Queria saber o que os jovens andavam a fazer. Era um visionário inigualável".
Foi isso que o levou a chamar como seus, os encenadores Christoph Marthaler (Wozzeck, 2008, Ópera de Paris) ou Krzysztof Warlikowski ( O Caso Makropoulos, 2007 Parsifal, 2008, ambos na Ópera de Paris, Alceste, 2014, Teatro Real), a encomendar cenários aos artistas plásticos Bill Viola (Tristão e Isolda, encenação Peter Sellars, Ópera de Paris, 2005) e Anselm Kieffer ( Am Anfan, Ópera de Paris, 2009) ou a encomendar óperas sobre a América edulcora e conservadora, como fez com Philip Glass ( The Perfect American, 2013, Teatro Real) e Charles Wuorinen ( Brokeback Mountain, 2014, Teatro Real).
Dizia Mortier: "Devemos lutar sempre pelo lado político do teatro, não por causa de uma ideologia, não importa se é de esquerda ou de direita, mas porque, para além de poder ser um objecto de entretenimento, também deve reflectir sobre a sociedade."
Há um antes e um depois de Mortier. Por onde passou, mudou as regras de funcionamento. Em 1981, ao entrar, aos 38 anos, para a direcção do La Monnaie, em Bruxelas, introduziu na ópera um equilíbrio entre a encenação e a música, transformando e influenciando as programações de toda a Europa.
O jornal La Libre Belgique fazia notar que as direcções de Serge Dorny em Lyon, Peter De Caluwe no La Monnaie, Bernard Foccroulle em Aix-en-Provence e Paul Dujardin no Palais des Beaux-arts, em Lille, “seguiam esta nova linha inaugurada por Mortier”. "Na ópera, como no resto, aliás, devemos perguntar por que o fazemos", disse ao PÚBLICO o director artístico em 2012. "É preciso desejar”.