Memórias do sismo de 1980 nos Açores reunidas num site
Milhares de fotografias, centenas de documentos e dezenas de testemunhos do terramoto compilados por quatro estudantes universitários.
O testemunho de Maria João Borges, que na altura do sismo ainda estava na casa dos 20 anos de idade, é um dos vários que se encontram num site destinado a preservar a memória do sismo de 1980 nos Açores. Quatro estudantes da Universidade de Aveiro, todos açorianos, todos da ilha Terceira, todos nascidos depois de 1980, tiveram a ideia de avançar com um projecto multimédia que criasse um repositório público de informação para manter viva a memória do sismo que matou 73 pessoas, fez 400 feridos e deixou mais de 21 mil desalojados e 12.000 estruturas danificadas.
O sismo ocorreu às 15h42 (hora local), teve uma magnitude de 7,2 graus e o epicentro foi no mar, a cerca de 35 quilómetros a su-sudoeste de Angra do Heroísmo. Na ilha Terceira, a mais atingida, causou a destruição de 80% dos edifícios na cidade de Angra do Heroísmo, assim como elevados danos na vila de São Sebastião e nas freguesias do Oeste e Noroeste da ilha, especialmente em Doze Ribeiras. Outras ilhas afectadas foram Graciosa e São Jorge.
Nas ilhas açorianas, este tremor de terra é conhecido apenas como Sismo d’Oitenta, designação escolhida também para o projecto multimédia de João Aguiar, Luís Silva, Luís Melo e Rubén Quadros Ramos, apresentado em Janeiro em Angra do Heroísmo. Tinham-se completado 34 anos desde o sismo.
Apesar de terem tido a ideia há três anos, altura em que os quatro estudantes universitários começaram a recolher informações sobre o sismo, só em 2013 é que puderam dar-lhe forma. Milhares de fotografias, centenas de documentos e dezenas de testemunhos foram então reunidos nos últimos dois anos, diz ao PÚBLICO João Aguiar, actualmente estudante do 2º ano da licenciatura de Novas Tecnologias da Comunicação na Universidade de Aveiro.
“Houve muitos valores que se apreenderam com o sismo, inúmeras histórias de heroísmo e sobrevivência, de dor e de pranto que não tiveram hipótese de ser registadas, porque havia feridos para tratar, mortos para enterrar e casas para reconstruir”, refere ainda João Aguiar, num comunicado da Universidade de Aveiro.
Através do site, os quatro estudantes pretendem chegar às pessoas que “sentiram a terra tremer”, aos que viram os “entes queridos falecer ou as suas casas ruir”, aos que “eram emigrantes e passaram semanas sem saber nada dos seus familiares”, ou até mesmo os que “vieram do outro lado do mundo para trabalhar na reconstrução das ilhas”, diz-nos outro dos mentores do projecto, Rúben Ramos, actualmente estudante de mestrado de Comunicação Multimédia na Universidade de Aveiro.
Não foi fácil chegar até aos “autores das fotografias, para lhes dar o crédito devido, e a informação dos vários documentos foi difícil de compilar”, explica ainda João Aguiar. Estes dados foram disponibilizados pela Direcção Regional das Obras Públicas, Tecnologia e Comunicações (onde se encontra todo o espólio do Gabinete de Apoio à Reconstrução, criado logo após o sismo), bem como pelo Instituto Açoriano da Cultura e por muitas pessoas. “A onda de informação que nos chegou e que ainda nos chega hoje é completamente extraordinária.”
“Nunca mais fui capaz de comer torta de cenoura”
No site encontram-se também fotografias sobrepostas: mostram como ruas, casas e outros edifícios ficaram depois do sismo e como agora os podemos encontrar. “É possível visualizar um resumo dos acontecimentos do sismo, observar uma comparação sobreposta entre fotografias da destruição e da actualidade, assistir a vídeos com pessoas ilustres a explicar as várias facetas da problemática, ler testemunhos de pessoas do dia-a-dia e partilhar a sua própria história”, refere Rúben Ramos. “É um projecto aberto e sem fins lucrativos, onde todos podem participar.”
As 40 a 50 pessoas com testemunhos no site, uns em vídeos e outros em texto, souberam do projecto através do Facebook, onde em 2011 começou a partilha de histórias e a recordação daqueles momentos difíceis. Outras conheceram o projecto através de amigos. Depois, algumas que viveram o sismo na pele foram entrevistadas pelos estudantes, por vezes nas suas casas.
Outro desses testemunhos é o de Avelina Cota. “A minha principal recordação é o barulho ensurdecedor, parecia um trovão que não parava de ressoar. Nem me apercebi do tremor da terra, vi mais do que senti, era como ver as imagens em câmara lenta e através de fumo.” Conta ainda que estava em casa de uma prima que tinha feito torta de cenoura, quando tudo começou. “Quando ia cortar a torta, ouviu-se aquele ruído aterrador e corremos para a rua, desci as escadas, saltei o muro para a rua de minha casa e sempre a tremer, a ribombar... Foi horrível.”
Uns dias depois do sismo, o pai de Avelina Cota decidiu dar a volta à ilha para ver os estragos. “Não conseguimos chegar ao fim, era demasiado penoso, principalmente quando avistamos as Doze Ribeiras do alto e só vimos pedras pretas. É uma visão que ainda recordo.” Desde então, duas coisas ficaram para sempre associadas uma à outra na memória de Avelina Cota. “Nunca mais fui capaz de comer torta de cenoura, lembro-me sempre do terramoto.”
O projecto não terminou nem a ideia é essa. O objectivo é continuar a reunir mais testemunhos e mais informação, para que o site seja um registo da história e da memória das ilhas açorianas e tenha também utilidade científica.