Ao observar as imagens e os relatos que têm sido divulgados, ocorreu-me uma trilogia, já célebre, elaborada para descrever o funcionamento do sistema da arte contemporânea, da autoria de Nathalie Heinich, socióloga francesa que tem desenvolvido excelentes estudos sobre esta prática, segundo a qual: cabe ao artista provocar, ao público rejeitar e ao crítico legitimar. A propósito do polémico caso de Oliveira do Hospital, estabeleci um paralelismo que descreve o insólito funcionamento do processo levado a cabo: o (suposto) restaurador transgrediu, o público aceitou e a crítica rejeitou. Num mundo ideal, as etapas da transgressão e da aceitação não teriam lugar e por isso a rejeição do sucedido deveria ser um dado consensual.
Ora, como sabemos, o ideal é sempre relativo e provisório, muda consoante os sujeitos, as instituições e até ao longo do tempo. Eis porque se debatem, nesta controvérsia, diferentes perspetivas do problema do património e da sua conservação:
– a dos encomendadores que reclamam o bom estado do património, com maior ou menor consciência das problemáticas a ele associadas, optando frequentemente por soluções que propõem rapidez e baixo custo;
– a dos utentes dos núcleos patrimoniais e a do público em geral que, aparentemente, preferiria reconstituições integrais, brilhantes e lisinhas que tornassem os objectos como novos;
– a dos especialistas que defendem as boas práticas regulamentadas e testadas, e discutem estratégias que podem determinar um trabalho que não pretende o efeito “novo”, do tipo cosmético, mas o efeito “tempo”, em que os objectos conservam as marcas da sua existência. A primeira estratégia é superficial, apaga as rugas como os truques do fond de teint que garante uma tez radiosa; a segunda é profunda e, em vez de mascarar, procura evidenciar as histórias que os objectos nos contam e a informação que extravasa a sua vida íntima para nos mostrar uma época e uma mentalidade.
Individualmente considerados, todos os pontos de vista serão válidos porque fundados em convicções, expectativas, tradições, conhecimento, desconhecimento, voluntarismo, e (não há como disfarçar) aquela iniciativa e aquele carácter empreendedor que todos querem possuir e manifestar.
Socialmente considerados, alguns destes pontos de vista perderão a sua fundamentação. Quando falamos de património estamos a falar de consenso, precisamente por ser um conceito socialmente construído, situado e contextual (Nathalie Heinich, La fabrique du patrimoine).
Nas últimas décadas assistiu-se à criação de cursos superiores em conservação e restauro de bens culturais e ao desenvolvimento de investigação nesse domínio, com vista a um conhecimento mais profundo dos seus materiais e componentes, dos fatores que conduzem à sua degradação e dos critérios e metodologias que orientam os processos de conservação e de restauro, no sentido de preparar profissionais para um mercado que, em Portugal, dada a riqueza do seu património histórico e artístico, representa inúmeras oportunidades.
A Universidade Católica Portuguesa, através da Escola das Artes, criou uma área de ensino de Conservação e Restauro de Bens Culturais, fixando-a no Norte do país, zona onde não existia qualquer formação superior desta natureza, estando em Tomar (Escola Superior de Tecnologia) e em Lisboa (Faculdade de Ciências e Tecnologias da Universidade Nova de Lisboa) os cursos desta área. Assim se criou um compromisso entre a universidade e a sociedade através do estudo, da preservação e da valorização do património. São estas as instituições de referência e o recurso à sua experiência deveria ser uma hipótese sempre ponderada.
O restauro – e tenho testemunhado inúmeros estudos e intervenções levadas a cabo na Escola das Artes – envolve uma série de operações complexas, desde as de teor conceptual às eminentemente técnicas e requer contributos de diferentes disciplinas, todas concorrendo para a prática abrangente e multifacetada do conservador-restaurador: a química e a biologia, a história da arte e a estética, a iconografia e a antropologia, o desenho e a pintura…
No entanto, o aumento de competências específicas e o aparecimento de uma área profissional estabelecida e regulamentada não deve afastar a ideia de que a responsabilidade da salvaguarda do património cultural é, antes de mais, uma responsabilidade partilhada. É uma responsabilidade partilhada por todos os cidadãos e disseminada por todas as instâncias que tutelam ou que gravitam em torno de núcleos patrimoniais, sejam Câmaras, instituições e entidades religiosas, agentes de turismo e todos os que usufruem do património. Estudar, conservar, dinamizar e rentabilizar são dimensões de um mesmo problema que respeita ao conjunto da sociedade e dos cidadãos.
Correndo o risco de utilizar uma palavra tão gasta, aqui fica um apelo ao consenso baseado na troca de experiências e na partilha de informação e de conhecimento. Porque tudo é passível de ser discutido – até o gosto, ou melhor, principalmente o gosto.
Directora da Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa, no Porto. A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico.