Um exercício de abertura

Se o leitor é uma pessoa que decide se vale ou não a pena ler uma crítica com base no número de estrelas que o crítico atribui ao livro, permita-me começar por dizer: não desista já. Sim, três é o meio-termo, o menos interessante, o que não é tão mau que nos faça querer perceber porquê nem tão bom que nos deixe curiosos. As três estrelas pressupõem que o livro é bom, que tem pontos de interesse, mas - e é sempre o mas que tira a vontade.

A conjunção estraga tudo. Portanto, deixemo-la de parte por agora e concentremo-nos no que de muito bom há em Open - A Minha História, a autobiografia do tenista Andre Agassi, escrita com a ajuda de J. R. Moehringer, escritor e jornalista, vencedor de um prémio Pulitzer em 2000.

Open é, acima de tudo, um desabafo; um longo e difícil desabafo, um exercício de abertura (o título alude a isso e faz um jogo de palavras com os principais torneios de ténis, os Opens) de alguém que escondeu sempre, ao longo da carreira, os seus verdadeiros sentimentos, que alimentou sempre uma ilusão, que passou grande parte da vida a dizer apenas aquilo que os outros esperavam que dissesse.

Tendo esta motivação, talvez a maior virtude literária desta autobiografia seja a de nunca deixar que esse sentimento se apodere da história. Não se lê Open como uma confissão, embora o seja, mas sim como uma história normal - que não é - repetida vezes sem conta. É com leveza que nos são dadas as informações de que Agassi sempre odiou o ténis, de que o pai o obrigava a treinar, contra a sua vontade, quase desde bebé, de que consumiu drogas, de que perdeu jogos de propósito, de que quis desistir de tudo inúmeras vezes. A outra grande virtude, e o motivo pelo qual o livro merece uma oportunidade, é a história em si - o caminho percorrido por um jovem prodígio do ténis que odiava o desporto e pensava constantemente no fim do tormento até se tornar uma lenda, um jogador respeitado e admirado, que se retirou depois de quase todos os colegas da sua geração, aos 36 anos. Nessa jornada de um ponto ao outro há de tudo: triunfos naturais e inesperados, derrotas forçadas e surpreendentes, quedas abruptas e um regresso que já ninguém esperava, depois de atingido o fundo dos fundos.

Open é um livro sobre uma pessoa privilegiada, que viveu uma vida que muito poucos vivem, e ainda assim é um livro sobre vidas normais, porque em todas as desilusões e vitórias daquele mundo alienígena há um eco das pequenas desilusões e vitórias que todas as pessoas enfrentam. Aí reside o fascínio da história. Não é necessariamente um livro para amantes do ténis porque, convenhamos, ler relatos de trocas de bolas e pontos espectaculares é tão estimulante como escolher a mobília de uma casa com base em descrições. O fascínio, aqui, é mais ou menos o mesmo de quando lemos um romance antigo e, apesar de todas as diferenças sociais, reconhecemos aqueles sentimentos, aquelas sensações, aquelas experiências. O mundo do ténis é apenas o cenário para uma história de vida que tem tudo: as contradições, as desilusões, os erros, a esperança, o desespero, a paixão, a gratidão. Havendo no leitor a mesma abertura que houve em Agassi, e a mesma disposição para receber os dados com a naturalidade com que são emitidos, sem julgamentos, sem condescendência, Open é uma história que tem muito para dar e que merece ser lida.

Há pormenores deliciosos a todo o momento, como a forma como começa a relação de Agassi com Brooke Shields, numa espécie de proto-Internet, ou a forma como toda a equipa de Agassi planeia o seu encontro com Steffi Graf, actual mulher e mãe dos seus dois filhos, ou o séquito inesperado de pessoas de que Agassi se rodeia: um ex-pastor que odiava dar “misssas” e queria ser songwriter, um treinador que nada sabia de ténis quando foi contratado. E há pormenores devastadores como a relação com o pai e o conflito interior que parece nunca, mas nunca, estar resolvido.

Talvez seja a velha história de que, afinal, aquelas pessoas que idolatramos, que vemos na televisão e nas revistas, cujas vidas invejamos, têm os mesmos problemas que as pessoas normais, apenas numa escala diferente. Porém, essa não deixa de ser uma história que precisa de ser contada, porque continuamos a idolatrar essas pessoas, a desejar aquela vida de facilidade. Esta em particular, a história de Agassi, dá-nos isso e dá-nos mais. Podemos ser muito pedantes e catalogar tudo isto como filosofia barata, como uma história engraçada com os seus momentos divertidos, ou podemos tentar tirar daqui qualquer coisa. Porque há sempre qualquer coisa que podemos tirar: Open é um livro que dá tanto mais ao leitor quanto maior for a sua abertura ao lê-lo; e nesse sentido o título não podia ser mais adequado.

Contudo, há um mas pendente. Se o leitor procura qualidade literária, não encontrará aqui qualquer recompensa. Para o bem e para o mal, o papel do jornalista que acompanhou Agassi na redacção desta autobiografia parece estar muito dissimulado. A voz do narrador soa realmente como a voz de alguém que não nasceu para escrever mas tem uma história para contar. Isso faz com que pareça autêntico, mas também com que se torne repetitivo no tom, aborrecido nas partes em que o que é contado tem menos interesse e cansativo na sua extensão.

Pesando tudo, Open é uma grande história, mas está longe de ser um grande livro. Não é, sequer, um daqueles livros que reconhecemos não estarem muito bem escritos mas somos incapazes de largar, porque nos prendem de tal forma que queremos sempre saber o que vem a seguir. É uma história fascinante, sim, que soa tremendamente real, com a qual nos identificamos em vários momentos, que reconhecemos como profundamente humana e, por isso mesmo, está cheia de momentos aborrecidos, desinteressantes e chatos. A vida é assim, certo? Se não fossem esses momentos, os outros, os grandiosos, não teriam metade da piada.

A leitura deste Open é como um jogo de ténis. Ganhamos o primeiro set com facilidade. Vacilamos no segundo e perdemos. Ganhamos o terceiro com um esforço tremendo e começamos a sentir que o jogo vai ser nosso. O quarto set prolonga-se e começamos a perder energia e concentração e o adversário bate-nos e iguala a partida. Queríamos acabar isto, resolver a coisa, e somos arrastados para o quinto set. Naturalmente, com o cansaço acumulado, só pode acontecer o pior: ir para tie break. Debatemo-nos com ferocidade e por instinto, passadas horas que parecem dias, a partida termina. Se o leitor ganha ou perde este duelo, depende da abertura com que para ele partiu. 

Sugerir correcção
Comentar