O melhor filme é o vencedor nas bilheteiras, o que faz as pessoas felizes ou aquele que é difícil de ver?

Os 86.ºs Óscares põem esta noite fim a uma das mais imprevisíveis corridas de sempre - Gravidade, 12 Anos Escravo e Golpada Americana são os favoritos num ano de controvérsias e muitas contas.

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Chiwetel Ejiofor em 12 Anos Escravo DR
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Amy Adams em Golpada Americana DR
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Sandra Bullock em Gravidade DR

Em 2013, à medida que a cerimónia dos Óscares se aproximava, tornava-se claro que a história da temporada de prémios se escrevia em torno do all american actor que batera no fundo cinematográfico e que se reergueria como uma fénix na cad

eira de realizador com Argo. No ano de Django Libertado e de Lincoln, Ben Affleck recebia o último Óscar da noite e a profecia cumpria-se. Este ano, está tudo em aberto e a conversa da indústria passou já da maturidade e qualidade dos filmes em contenda para a imprevisibilidade da noite dos 86.ºs Óscares da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas.

Em Los Angeles e Nova Iorque, é impossível fugir aos Óscares e aos seus principais candidatos, dizem ao PÚBLICO os veteranos da crítica Richard Brody, da New Yorker, e Kenneth Turan, do Los Angeles Times. Os Óscares estão por todo o lado, e não só nas páginas da imprensa e nos cartazes nas ruas. Desde Janeiro, houve galas atrás de galas, prémios e guildas, globos e eventos de charme. “Acho que toda a gente sente que esta é a corrida para os Óscares mais renhida de que tem memória. O consenso é que há três filmes que têm hipóteses de ganhar e isso é altamente invulgar. E também é altamente invulgar chegar tão longe no processo e não haver certeza de quem vai ganhar”, diz Turan.

Para Richard Brody, que descreveu o ano cinematográfico de 2013 como “espantoso” no seu apanhado para a New Yorker, “é sempre surpreendente ver bons filmes nomeados”, diz-nos ao telefone. Vê os nove filmes candidatos ao Óscar mais cobiçado como “um sortido diverso de filmes nas suas características particulares e nas suas qualidades artísticas”. Tem um favorito em grande parte das categorias principais, embora não acredite que saia vencedor: é um apaixonado por O Lobo de Wall Street, o “excelente filme” de Martin Scorsese. Depois, para ele, vêm os “muito bons” Nebraska, de Alexander Payne, ou 12 Anos Escravo, de Steve McQueen, e as “meras curiosidades como Her – Uma História de Amor, que é um péssimo filme” e trabalhos “muito convencionais como Filomena”. Há ainda o também favorito Golpada Americana, o filme “que faz as pessoas felizes” e que fez de David O. Russell o único realizador nos últimos 30 anos a conseguir a nomeação do seu elenco nas quatro categorias de actuação dos Óscares pelo segundo ano consecutivo, e Gravidade, o filme que acredita que dará o Óscar de Melhor Realizador ao mexicano Alfonso Cuarón.

As contas de Richard Brody, as de Kenneth Turan, ou as de outros peritos que há anos acompanham a noite maior do cinema americano, como Scott Feinberg, da Hollywood Reporter, ou Tim Gray, da Variety, perdem já pouco tempo a discutir cada um dos candidatos e seus méritos, frisando sempre a “qualidade” geral dos nomeados. Falam de “incerteza”, de “apostas”, de probabilidades, fazem contas e nas suas publicações divulgam-se as escolhas (anónimas) de um punhado de membros da Academia ou aplicam-se algoritmos para tentar adivinhar quem vai cruzar a tão desejada meta da madrugada dos Óscares. Óscarologia, no fundo.

“As pessoas sentem que é uma corrida renhida e por isso tudo tem um peso emocional maior”, comenta o crítico do LA Times sobre a intensa campanha, mais demorada por causa do adiamento dos Óscares para Março para evitar a concorrência de audiências televisivas dos Jogos Olímpicos de Inverno. Uma dessas campanhas diz simplesmente, sobre a imagem de Chiwetel Ejiofor em 12 Anos Escravo: “It’s time”.  

A safra de 2013

É tempo e está na altura de premiar o primeiro realizador negro com um Óscar, num momento em que a própria Academia tem a sua primeira presidente negra e Obama assistirá à cerimónia na Casa Branca? Está na hora de enfrentar a imagem da América ao espelho para ver os fantasmas de escravos passados no seu rosto – ou, melhor: no rosto de Ejiofor como Solomon Northup, o músico negro livre que foi raptado e escravizado no século XIX? Ou o momento é de contemplação e renascimento, quando estamos finalmente sós com Sandra Bullock no espaço no feito técnico que é Gravidade? Também pode ser o timing perfeito para ver Jennifer Lawrence e Amy Adams dominar a arte de burlar como única saída do sonho americano numa Golpada Americana.

São três filmes muito diferentes, realizados por um ex-artista plástico que não faz storyboards e tem como marca a “justaposição da beleza e do horror”, como diz John Singleton do britânico Steve McQueen, ou por um cineasta que “mistura a emoção crua e a técnica assombrosa”, como Guillermo del Toro descreve o seu amigo Alfonso Cuarón a propósito de Gravidade. E ainda por um realizador adorado pelos seus actores, que são quase a trupe David O. Russell, e que nos últimos quatro anos viu os seus filmes nomeados para os Óscares três vezes.

Além deles, a safra de 2013 à luz dos Óscares, que mistura filmes independentes com explosões espaciais de tecnologia de grande orçamento, tem ainda os jogos de poder polvilhados de cocaína e estrelas de O Lobo de Wall Street ou o drama britânico com sotaque irlandês com o catolicismo em fundo de Filomena, de Stephen Frears. A eles junta-se a emergência do activismo ligado à sida de O Clube de Dallas, cujos actores Matthew McConaughey e Jared Leto são favoritos, o alcoolismo a preto e branco de Nebraska, de Alexander Payne, o escapismo do amor pela voz de um sistema operativo de Her, de Spike Jonze, e a pirataria ao largo da Somália de Capitão Phillips, com Tom Hanks a bordo e o estreante Barkhad Abdi a poder saquear o prémio de Actor Secundário a Leto.

Na categoria de melhor actriz, Cate Blanchett mantém-se como favorita para coroar a sua nervosa e instável Blue Jasmine - apesar de, no primeiro dia de Fevereiro, a carta aberta de Dylan Farrow que reitera as acusações de alegado abuso sexual por parte de Woody Allen ter gerado debate sobre se prejudicaria a actriz australiana nos Óscares. Kenneth Turan e Richard Brody concordam que Blanchett “nada tem a ver” com o caso e também relativizam outras conversas paralelas sobre os filmes nomeados, da veracidade da personagem de McConaughey em O Clube de Dallas às críticas ao estilo glorificador do crime de Lobo ou Golpada.

Mesmo quando falamos do peso da representação racial que pende sobre 12 Anos Escravo, os críticos desdramatizam o crescendo de expectativas em torno do filme – um exemplo é o crítico do Guardian, Tim Shone, que postula que “a Academia não conseguirá viver consigo mesma se deixar passar a oportunidade de recompensar o tratamento definitivo da escravatura ou sobre a experiência negra, algo em que não têm tocado desde No Calor da Noite (1968)”.

“É errado fazer uma grande coisa do facto de este filme se ter estreado agora”, diz ainda Brody sobre a moldura Obama. “Steve McQueen chegou a um lugar na indústria em que o podia fazer. É só o seu terceiro filme”, recorda. Quanto às expectativas, e dada a mensagem que diz aos votantes e ao público que “it’s time”, Kenneth Turan reconhece o argumento, mas lembra que este “podia ser um ano em que isso era uma facto consumado - mas este ano é diferente, a concorrência é forte”. Não há certezas.

Sistema político

A politização e a discussão dos temas dos filmes do ano é frequente, de Brokeback Mountain a 00h30: A Hora Negra, e muitas vezes a estética e a arte do cinema perdem um pouco para o tema do momento. Actualmente “há muito mais consciência das implicações sociais e políticas do storytelling”, contextualiza Richard Brody. “As pessoas sabem como se fazem as estrelas, mas continuam a amá-las. Sabem como os filmes se fazem, mas continuam atraídas pelos filmes.”

Essa transparência, acredita o crítico da New Yorker, passou também para os próprios Óscares, cujo funcionamento é cada vez mais de domínio público, das suas tentativas de adaptação à fuga do público de massas aos métodos de votação ou à constituição da própria Academia.

Quando o domingo se estiver a deitar e os Óscares não deixarem dormir as primeiras horas de segunda-feira, a cerimónia apresentada por Ellen DeGeneres será transmitida para mais de 200 países (em Portugal, na TVI), com muitos watts de estrelas de Hollywood e arredores. Contudo, num ano em que um dos favoritos está classificado na pouco atraente categoria dos “hard to watch” – 12 Anos Escravo carrega essa cruz desde a estreia no Festival de Toronto, em que houve abandonos da sala durante os castigos aos escravos -, não haverá super-heróis, carros velozes e furiosos nem jogos de fome. Entre os nomeados para as principais categorias dos Óscares, só Gravidade, Golpada Americana e Frozen – O Reino do Gelo (o favorito para o Óscar de Melhor Filme de Animação, que será o primeiro para a Disney desde que a categoria foi criada em 2002) entram na lista dos 20 mais vistos de 2013.

“Os Óscares são um pouco como um sistema político num país. O que quer dizer que o eleitorado está dividido - o eleitorado está sempre dividido”, compara Richard Brody. A maioria “vai eleger os representantes da indústria por um certo tempo”, continua. Não são um filme ou um candidato político, mas sim “o acolhimento colectivo do próprio sistema que torna a eleição possível” – ou seja, a Academia não representa a totalidade da indústria, muito menos o(s) público(s), mas as suas decisões são aguardadas com expectativa e são um marco no calendário da indústria do cinema.

A Academia são 6028 pessoas, na sua esmagadora maioria homens brancos acima dos 60 anos que trabalham na indústria ou estão reformados. O maior grupo são os cerca de 1100 actores, acompanhados por técnicos e outros profissionais e cada um deles, escreveu o New York Times na semana passada, tem os seus gostos – o que faz com que “na corrida aos Óscares, tal como na política, a demografia seja importante”. “É um conjunto invulgar de critérios segundo os quais a indústria do cinema escolheu representar-se”, analisa o crítico da New Yorker.

Daí vêm as surpresas, como a vitória de Colisão em 2008, o fenómeno inconsequente de O Artista em 2012 ou as cisões que fazem com que um melhor filme não tenha necessariamente um melhor realizador, actores ou argumentos - ao contrário dos tempos unânimes de O Cowboy da Meia Noite (1970), O Padrinho II (1975), Voando Sobre um Ninho de Cucos (1976) ou Kramer contra Kramer (1980). Mesmo o colosso Titanic, que em 1999 recebeu 11 Óscares, juntou às categorias técnicas apenas o prémio para James Cameron e para o melhor filme.

E eis-nos perante um ano com três “finalistas”. O vencedor nas bilheteiras, Gravidade, com 512 milhões de euros de receitas mundiais, não está nomeado na categoria de argumento, o que prejudica as suas hipóteses de ser coroado no final da noite. Resta outro filme rentável que faz as pessoas felizes e um filme importante difícil de ver. Já chegámos?

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