“Sou uma grande nerd, uma espécie de obcecada pela tecnologia, e tenho andado a descobrir formas criativas de fazer um monte de sons — de uma maneira orgânica, mas sem 17 pessoas.” Era assim que, numa das primeiras entrevistas acerca do seu disco de estreia, Marry Me, Annie Clark falava sobre o projecto St. Vincent. “Sem 17 pessoas” à sua volta, entenda-se, porque Clark integrava então o exército gospel pop de branco trajado, com ares de seita doentiamente optimista, chamado Polyphonic Spree. Marry Me, é certo, dificilmente conseguiria camuflar o lado nerd de uma cantora que tocava todos os instrumentos que houvesse para tocar: guitarra, baixo, sintetizadores, piano, campainhas, apitos e lava-loiças. Nerd ao ponto de já então ter actuado com a 100 Guitar Orchestra do mago do ruído Glenn Branca e confessar-se fascinada pelo chinfrim produzido por aquela incontrolável massa sonora. Nerd ao ponto de citar Stravinsky como uma referência de peso na sua composição e, mais nerd ainda, isso não ser verdadeiramente descabido no espaço de acção reclamado pelas suas canções pop/rock. Nerd ao ponto de, em adolescente, como confessa agora ao Ípsilon, pedir boleia à mãe “na sua carrinha de soccer mom” até à loja de discos de Dallas onde tentava impressionar os empregados com perguntas do género “Quem são os A Tribe Called Quest?” ou “Weasels Ripped My Flesh [dos Mothers of Invention], a que soa isto?”.
Numa terra em que a rádio não conhecia música que não fosse aquela que transitoriamente se passeava pelos tops, “ser cool” passava por impressionar empregados de lojas de discos, demorar-se horas nos postos de escuta a encher os ouvidos com Nick Cave e PJ Harvey, conhecer os créditos dos discos de cor. “Muita da minha exploração musical aconteceu porque juntava o dinheiro da mesada, ia à loja, lia os créditos e comprava discos porque se um produtor tinha feito um disco de que gostava devia gostar das suas outras produções.” Esse conhecimento enciclopédico provar-se-ia muito útil quando, em estúdio com os Polyphonic Spree, Clark se cruzou com Mike Garson. No seu dicionário mental, Garson correspondia a “pianista que tocou com David Bowie, autor do solo de Alladin sane, gravado ao primeiro take”. Seria puxado para o disco de estreia de St. Vincent, no tema All my stars aligned.
Marry Me, de 2007, dava já conta de uma espessura rara no campo da pop. Sem gozar ainda da mesma argúcia melódica que hoje facilmente levará qualquer músico a consumir-se de raiva por não conseguir ser tão estupidamente bom e único em tempos de saturação de todas as fórmulas possíveis, canções como Your lips are red eram já assertivas na afirmação de Clark enquanto rapariga para enfiar quatro a cinco temas num só bloco de quatro minutos e soar encantadora. Guitarras indecisas entre o jazz e o rock, sequências de uma inocência vocal capaz de despertar Judy Garland do seu sono eterno, uma inquietude rítmica espasmódica que parecia impossível de casar com a candura da voz que lhe derramava por cima. Clark, perdida nas fotos da multidão de robes brancos dos Polyphonic Spree, parecia querer ser outras tantas personalidades musicais ao mesmo tempo, ocupando com uma animada avidez todo o espaço de uma canção.
Hoje, a diferença é que tudo decorre sem essa ansiedade inicial. O que faz de cada canção do seu álbum homónimo mais devastadoramente eficaz. Tudo está imaculadamente no sítio e polido. Algo a que a colaboração com David Byrne no anterior disco a dois, Love this Giant, não será estranha. Basta ouvir o frémito que toma conta de Birth in reverse e Digital witness para perceber o rasto desse breve casamento. Não por acaso, diz-nos Annie Clark, concede ao seu quarto álbum como St. Vincent essa simbólica opção pelo título homónimo: “Estava a ler a autobiografia do Miles Davis e ele dizia que a coisa mais difícil para qualquer músico é soar a si mesmo. Acho que soo a mim neste disco, por isso quis que se chamasse assim.”
Alucinação em Helsínquia
36 horas. Foi quanto St. Vincent tirou de férias após a digressão de 18 meses com David Byrne, antes de começar a compor um novo álbum. Daí que seja naturalmente fácil reconstituir o caminho até ao rastilho de alguns temas. “Ainda carregava comigo o ambiente dos concertos e queria que este disco fosse upbeat, porque na digressão com o David via as pessoas levantaram-se das cadeiras e dançarem, e isso foi muito entusiasmante”, diz, ao mesmo tempo que recorda o mote de compor “um disco de música de festa que fosse tocado em funerais”. “Percebi que o David é muito destemido e generoso. Quando comecei este novo disco queria atingir esse nível de destemor que não tinha conseguido no passado.” E isso implicava apenas 36 horas de descanso? “Demasiada ansiedade acaba por debilitar, mas com moderação ajuda a voltarmos à acção. E gosto de ser criativa, faz-me sentir viva. Se paro durante muito tempo sinto-o no corpo, fico agitada.”
Agitação, precisamente. Na longa digressão de promoção ao anterior álbum, Strange Mercy, viu-se em Helsínquia com uma receita de Ambien na mão. “Tinha um dia inteiro para recuperar o sono antes de a digressão recomeçar”, recorda. Mas não foi bem o que aconteceu. Os dois efeitos previstos pelo Ambien, esclarece-nos, são “dormir que nem um bebé” ou, pelo contrário, “não pegar no sono e começar a alucinar”. Ora na roleta russa do medicamento — antes de, em Janeiro de 2013, a Food and Drug Administration ter reduzido a dose recomendada de Ambien —, saiu a Clark uma alucinação em que se convenceu estar na presença de Huey Newton, um dos fundadores dos Black Panthers, com quem acreditou ter uma amistosa conversa no seu quarto. Finalmente adormeceu e acordou a perguntar-se por que raio teria convocado para o seu estado alterado alguém de quem pouco conhecia além “daquela foto icónica em que está com uma metralhadora”. O que fazer com isto? Uma canção. Até meio, atribuível a uma Tori Amos depois de tomar Ambien, domada. A partir de meio, o efeito da medicação passa igualmente a Annie Clark e encharca-se antes em guitarra eléctrica lamacenta e teclados de sessões espíritas.
O sono também circula pelo refrão de Digital witness, no momento em que Clark desembainha o sarcasmo para perguntar “what’s the point of even sleeping if I can’t show it”, aludindo a um tempo em que, de unhas encravadas e golpes de estado ao nascimento de bebés e carros mal estacionados, tudo se partilha on-line no segundo seguinte. “Somos todos um pouco dependentes da tecnologia — ou talvez esteja apenas a falar de mim”, confessa-nos Clark, ignorando a primeira linha deste texto. “Penso que ficámos mais habituados a documentar a nossa vida do que a vivê-la. Acho interessante observar como isto está a alterar os nossos comportamentos. Agora que sabemos aquilo de que sempre suspeitámos nos últimos 12 anos, que o governo americano nos está a espiar a todos, parece-me que a privacidade será o bem mais precioso neste novo mundo. Ou avançamos para essa realidade, ou então fazemos aquilo que penso já estarmos a fazer: tornamo-nos transparentes como mecanismo de defesa.”
Não é só um terramoto que passou a ser teoricamente igual àquilo que Miley Cyrus usou na sua última saída à noite — exemplos de Clark. A revolução digital, lamenta, faz com que discos do hip-hop mais comercial e da pop mais desajustada possam hoje existir numa “mesma zona sónica” por usarem os mesmíssimos bancos de sons dos mesmíssimos programas em modo DIY-computador portátil. Por isso, ela que nunca viu em Kanye West um deus confessa-se rendida a Yeezus — “parece o Kanye possuído pelos Ministry, a fazer música industrial dos anos 80/90” —, ainda que continue a não poder ouvi-lo abrir a boca sempre que fala de mulheres. O mal de West, acredita, prende-se com a perda das qualidades de ascensão social que a música norte-americana sempre teve. Para ela, “é complicado aceitar alguém que se queixa do alto de uma torre de marfim”. A questão não é nova, diz-nos, vem desde as bandas de arenas rock que cantavam sobre camas cheias de mulheres enquanto o país era afectado por severos condicionamentos de acesso à gasolina nos anos 70. “Mas quem é que se vai identificar com isso?”, desabafa.
“Toda esta obsessão tecnológica faz com que as estrelas de rock pareçam o Julian Assange.” Isso seria de mais para St. Vincent. O disco em que soa a ela quer apenas pôr as pessoas a dançar.
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