Em relação a Breve Passagem pelo Fogo (Artefacto, 2011), livro de estreia de Frederico Pedreira, Doze Passos Atrás produz um gesto de síntese e agudização, já sensível em O Artista Está Sozinho (Edição do Autor, 2013). Paralelamente à passagem da prosa ao verso, a expressão e o discurso tornaram-se mais oblíquos; as imagens fizeram-se menos imediatas, e a dicção mais áspera. A placidez de alguns reparos e quadros, a planura de certa introspecção conhecem, neste livro, relevos mais acidentados, e obedecem a impulsos mais energéticos e rudes. O registo mostra-se agora mais violento — “reverbera nos dentes essa armadura/ que faz tremer o cimento do coração” (p. 19). De certa forma, Pedreira elidiu a acumulação de recursos a que levavam certos enfoques contemporâneos; por outro lado, transpôs os elementos de perigosidade do que chamara as “casas incendiadas da memória”, nomeadamente os apresentados pelo tema da infância — possivelmente, um dos terrenos mais pantanosos para qualquer poesia. Esta, quando surge, revela-se de forma diferida (um dos poemas da última secção chama-se, aliás, Diferido), ou apenas “grunhindo para dentro” (p. 12), isto é: confinada a uma emissão mal inteligível. Porque o autor parece dirigir a atenção da sua escrita para as implicações de uma idade criticamente adulta, quase sempre auscultada de modo severa. O modo narrativo deu lugar ao lírico, na medida em que, nesta nova recolha, parece importar menos a contemplação do mundo — enquanto sede da própria vida, e como catalisador de possíveis relações com o eu — do que a focagem no próprio sujeito, quase independentemente da sua envolvência. O que não quer dizer que isso resulte numa condenável alienação, ou na obliteração de todos os referentes.
Em Lacaio, primeira parte de Doze Passos Atrás (porventura, o núcleo mais forte do livro, de uma radicalização mais conseguida, tanto por meio da abjecção, quanto pelo encrespar da linguagem), é talvez possível distinguir um eco do universo de Mário de Sá-Carneiro. Desde logo, pelo título. Releiam-se, a esse respeito, poemas de Sá-Carneiro como Aqueloutro (“Seu ânimo cantado como indómito/ Um lacaio invertido e pressuroso”) ou Não (“Lá se ergue o castelo/ Amarelo do medo/ Que eu tinha previsto:/ As portas abertas,/ Lacaios parados”). De resto, os três primeiros versos do poema inicial de Doze Passos Atrás emitem sinais que identificam o autor de Dispersão como seu espectro — “O lacaio às cabeçadas pela moradia/ mãos mordidas sombras em espiral/ entre paredes estáticas que engordam devagar/ da boca lambe os filtros amarelecidos” (p. 11). Vocábulos como, desde logo, “lacaio”, mas também “filtros”, verbos como “engordam”, ou até um verso como “mãos mordidas sombras em espiral”, parecem revisitar aquele cosmos poético. Dois versos como “ando aos tombos falhando/ todos os candeeiros da rua” (p. 23) deverão ser menos a simples recordação de Sá-Carneiro do que a resposta desta poesia ao Esfinge Gorda: “Se me doem os pés e não sei andar direito,/ Pra que hei-de teimar em ir para as salas, de Lord?/(…) Pra que hei-de então andar aos tombos, numa inútil correria?” (Caranguejola).
Doze Passos Atrás promove uma perscrutação atenta e tenaz do sujeito dos poemas. Por vezes arriscada, porque sujeita aos riscos da sobreexposição, ela formula-se, por exemplo, através da identificação entre corpo e casa — “O bafo de sangue na portinhola/ que lhe dá um número e o silêncio/ e uma a uma caem as telhas deste nojo/ sobre a cabeça velha farta” (p. 21) —, o que possibilita efeitos frequentemente poderosos. De forma concomitante, alguns poemas conduzem uma análise especialmente severa da domesticidade, percorrida na via reticente da rememoração — “A velha escrivaninha/ onde a aprendizagem da multiplicação foi/ perdendo, com os anos, a sua razão de ser./ Repetente incorrigível, senta-se nela a tua infância:/ tem sido sempre melhor do que agora» (p. 33) —, ou pela senda que conduz à constatação da “merda conjugal” (p. 21).
O imperfeito imprime uma toada melancólica a alguns pontos do livro — “quando diziam rapaz” (p. 35) —, como assinala, no poema, repetições e sinuosidades, asperezas sensíveis em rotinas que parecem decorrer, ainda, algures nos anos do passado — “contavas sempre as mesmas histórias” (p. 38). O corpo-a-corpo entre presente e passado chega a forçar a entrada em cena de versos ocasionalmente sobrecarregados, face ao organismo global do poema — «É para ela que hoje olho, já desarrolhada,/ sobre a mesa excessivamente despida,/ libertando aos poucos um vapor estranho” (p. 36) —; contudo, permite também evidenciar uma capacidade assinalável de manejar os materiais da memória e do seu exame — “Foram eleitas entre os despojos daquele dia,/ afinal tão igual aos outros todos,/ apenas com a novidade dos nossos troncos/ inclinados um para o outro, sobre um muro,/ segredando em fatos de ginástica” (id.) Recusando um esmero excessivo de retratista, o autor consegue servir-se da capacidade descritiva, sem evitar certo pormenor quase preciosista, capaz de misturar, no mesmo receptáculo, o simples cromatismo com a sugestão de ruindade — “Aqui tens os meus olhos/ a mudarem lentamente do castanho para o sanguíneo” (p. 39). De modo algo paralelo, entre a aparição de “táxis” e uma declaração de “acidente”, o que está em causa é a capacidade efabuladora de alguns poemas (mas que é, igualmente, leme seguro dos sentidos figurados) — “Que passem os táxis, sempre tão encaminhados:/ o que me podes mostrar/ do acidente de ficar parado, de/ cair sobre as mesas” (id.).
Esta poesia consegue circunstanciar o corpo de uma forma muito própria, que lhe é território específico, num equilíbrio instável entre um desconforto autodepreciativo e o inesperado da fruição — “Aceita um beijo de boas noites/ desta minha boca escovada,/ caçadeira desengatilhada que me/ pediste gentilmente para guardar” (p. 41). O corpo é, como sempre, um lugar que dá para a morte. Esta poesia é capaz, nos seus melhores momentos, de o reconhecer de uma forma conseguida. Como o poema Último Mergulho (possível referência ao filme de João César Monteiro, cujas palavras, no início de Recordações da Casa Amarela, servem de epígrafe a Doze Passos Atrás: “Largar um fósforo a isto tudo”), que consegue construir um terrível preâmbulo para a morte, ao entrecruzar casa e corpo pelos tentáculos diversos da metáfora que tudo enlaçam: “Pela noite é quando tudo sossega, e/ é isto o que tenho: mão ágil no pescoço,/ a gravata e algum choro arrancados (…) os joelhos perto um do outro/ sobre a cama e no rosto a frescura das/ algas que ficaram do último mergulho” (p. 66).
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