Catalunha fala ao mundo para obrigar Madrid a ouvir

Está em curso uma batalha pelo “direito a decidir”.

Foto

á qualquer coisa que está para acontecer. Desde sempre, diriam uns; para outros, nem tanto, há um nacionalismo histórico, mas foram os ataques à autonomia e as humilhações dos últimos dez, 15 anos que fizeram crescer o sentimento soberanista. Qualquer coisa vai acontecer, seja como for, qualquer coisa vai mesmo acontecer, ouve-se dizer por estes dias na Catalunha. 

Em Dezembro, quase dois terços do parlamento catalão chegaram a acordo para a realização de um referendo sobre a independência. Há uma pergunta, que na verdade são duas: “Quer que a Catalunha seja um Estado?” “Se sim, quer que a Catalunha seja um Estado independente?” Há uma data, 9 de Novembro de 2014. E uma determinação dos políticos que estes dizem inabalável por ter nascido nas ruas, das gentes que se organizaram para votar em referendos simbólicos e para se manifestar em marchas gigantescas. 

Mais de 80% dos catalães querem votar sobre o seu futuro, apontam diferentes sondagens realizadas nos últimos meses. E isso, diz-nos o presidente do governo regional, Artur Mas, significa que essa consulta vai mesmo acontecer. De uma maneira ou de outra. 

“O referendo é inconstitucional e não se vai realizar.” Assim reagiu o primeiro-ministro de Espanha, Mariano Rajoy, ao anúncio da data e da pergunta. “Enquanto eu for presidente do Governo, nem se celebrará nenhum referendo ilegal, nem se fragmentará a Espanha”, repetiu, o mês passado, durante uma reunião do seu Partido Popular em Barcelona. A campanha que Rajoy e o resto da liderança do PP fazem pelo “não”, respondeu Artur Mas, faz pensar que o partido aceita “de facto” a consulta. Não aceita, e Artur Mas sabe-o melhor do que ninguém.

A Catalunha está decidida, Madrid recusar ver. Resta à Catalunha falar ao mundo e esperar que o mundo obrigue Madrid a ouvir.

“Catalonia Calling – What the world has to know” (O que o mundo tem de saber), lê-se na primeira página de um livro, parte de uma campanha com o mesmo nome organizada pela revista de história Sàpiens, de Barcelona, em colaboração com a Associação Nacional Catalã (ANC). Cada exemplar — 15 mil foram enviados “a pessoas influentes em todas as partes do mundo” — segue com uma carta em que se explica que se trata de uma prenda de um catalão. O que a Revista 2 recebeu calhou ser oferecido por Cristina Escolano Galofré, uma de 15 mil pessoas que participaram numa campanha de crowdfunding

Contribuições de catalães comuns, como os que se associaram nos seus bairros e nas suas cidades para fazer nascer a ANC, a associação por trás das manifestações dos últimos dois anos da Diada, o 11 de Setembro, quando se assinala a derrota da Catalunha na Guerra da Sucessão. Um dia que costumava ser marcado por alguns milhares e que em 2012 juntou mais de um milhão em Barcelona. O ano passado, 1,6 milhões participaram num cordão humano por toda a Catalunha.

300 anos de uma relação impossível

Foi há 300 anos e a data surge nos títulos destacados no livro da Sàpiens. “1714: O conflito que acabou com a perda das liberdades da Catalunha”, é um deles. “Catalunha e Espanha – 300 anos de uma relação impossível”, é outro. Os catalães gostam de dizer que o processo actual é mais sobre futuro do que sobre passado, mas o passado importa para perceber como aqui se chegou. Até 1714, diferentes reinos coexistiam: no reino de Catalunha e Aragão funcionavam os Tribunais Catalães (embrião do parlamento catalão) que partilhavam o poder com o rei. Apanhada na batalha pela coroa espanhola, Barcelona foi sujeita a um longo cerco e a bombardeamentos, primeiro pelas forças de Carlos da Áustria, depois pelos exércitos franco-espanhóis. A queda de Barcelona e o fim desta guerra assinalou a integração definitiva da Catalunha no Estado espanhol e o início de um reino centralizado.

O facto de os catalães terem feito desta data o seu feriado nacional chegaria para perceber que esta não é uma relação bem resolvida. Vista da Catalunha, é como um casamento em que uma das partes fez o que pôde para encontrar um lugar para si sem desistir do casal e a outra parte nunca lhe deu espaço. Agora, pode ser tarde.

Até há pouco tempo, Artur Mas, presidente do governo regional, defendia uma autonomia reforçada para a Catalunha em Espanha. Tradicionalmente, era essa a posição do seu partido, a Convergência, e da coligação CiU (Convergência mais União Democrática da Catalunha, direita nacionalista) com que se apresenta a votos. Artur Mas mudou de ideias. “’Sim’ e ‘sim’, a minha convicção pessoal enquanto indivíduo é essa”, diz o presidente catalão numa entrevista conjunta a sete jornalistas de países europeus. Hoje, Artur Mas responderia duas vezes “sim” no referendo que diz que vai fazer. “Essa é a minha convicção. A minha responsabilidade enquanto presidente é organizar uma consulta e gerir este processo da melhor maneira.”

“Penso que é o futuro natural de uma nação antiga que manteve a sua cultura e a sua língua através dos séculos, que foi capaz de integrar milhões de pessoas que vieram de outras partes de Espanha e de outras partes do mundo, uma nação que manteve até hoje a vontade colectiva de agir enquanto nação. Isto é uma nação. Nação significa um território definido, que nós temos, uma cultura própria, que temos, uma língua específica”, diz Artur Mas. 

Uma nação tem uma capital e um governo, a Generalitat, em cuja sede o líder catalão recebe os jornalistas. Numa das salas deste palácio no meio do Bairro Gótico de Barcelona, descobrimos por estes dias, há um quadro que continua na parede onde sempre esteve, mas desde há um ano deixou de se ver, foi tapado por uma cortina: é o retrato do rei de Espanha, Juan Carlos.

O que vamos fazer a 9 de Novembro?

Nação é uma palavra que ocupa uma parte grande deste debate. Na Constituição espanhola, a da transição do franquismo para a democracia, em vigor até hoje, está escrito que em Espanha há nacionalidades e há regiões. “Diz nacionalidades, porque se temia a palavra nações, inventaram este termo. Foi a solução que encontraram naquele período difícil, três anos depois da morte de Franco, três anos antes do golpe de Estado de 1981. Foi nessas condições históricas que a Constituição foi aprovada. Chamaram à Catalunha, ao País Basco e à Galiza nacionalidades e ao resto dos territórios regiões. Mas é difícil ter uma nacionalidade sem uma nação”, afirma Artur Mas.

Foto
Artur Mas nas eleições de 25 de Novembro de 2012, quando foi eleito para a Generalitat Albert Gea/REUTERS

Legalidade é outra palavra persistente. Madrid insiste que o referendo que a maioria dos partidos catalães querem fazer não pode acontecer porque é ilegal. Contraria a Constituição, que define a unidade de Espanha, e na Constituição não se mexe. Artur Mas também fala de legalidade, muitas vezes. Enumera as “cinco possibilidades legais” identificadas para realizar a desejada consulta. As quatro primeiras dependem de uma negociação com o Governo central: a 16 de Janeiro, o parlamento catalão fez avançar uma delas, ao aprovar uma resolução a pedir ao Congresso, o Parlamento nacional, que transfira para si a legitimidade de organizar o referendo.

“Há uma vontade do parlamento catalão em lidar com as instituições espanholas, em estabelecer um diálogo e uma negociação, em fazer tudo dentro da legalidade e em acordo com Madrid”, insiste Artur Mas. “O Parlamento espanhol aceitou receber a nossa resolução e teremos uma resposta daqui a alguns meses. Em teoria, eu devia dizer que não sei qual vai ser a resposta, mas presumo que vá ser negativa. Quando tenho conversas privadas com o presidente Rajoy, a resposta é sempre que não há qualquer possibilidade de que esse poder seja transferido. É possível, do ponto de vista legal, mas não há vontade política para o fazer”, diz Artur Mas. “Então, a pergunta é o que é que vamos fazer no dia 9 de Novembro”, lança o presidente, sem chegar a dar uma resposta conclusiva.

O próximo passo será de novo dado no parlamento regional. Ali se vai aprovar uma lei que dará às autoridades regionais a capacidade de organizar consultas, não um referendo vinculativo. “Do ponto de vista político, é o mesmo”, diz Artur Mas. “O que vai acontecer, de certeza, nos próximos meses, é que eu vou pedir que esta consulta específica aconteça no dia 9 de Novembro.”

"Eu quero respeito"

O problema é que Artur Mas também já sabe o que vai acontecer a seguir. “O Governo espanhol pode aceitar essa consulta como um assunto catalão, ou decidir recorrer para o Tribunal Constitucional, pedindo que essa lei específica do parlamento catalão seja revogada e suspensa”, explica. Ninguém duvida que é isso que vai acontecer. Afinal, se a Catalunha está onde está, muito se deve ao dia em que o PP de Rajoy decidiu apresentar em 2006 um recurso ao Tribunal Constitucional contra o Estatuto de Autonomia (que 90% do parlamento catalão aprovara). O documento, que entretanto tinha sido aprovado em referendo na Catalunha e já estava em vigor, saiu muito enfraquecido do Constitucional, que diminuiu vários dos poderes que a Generalitat se tinha atribuído a si própria. O PP não se limitou a recorrer para a Justiça, lançou também uma campanha nacional de recolha de assinaturas para um referendo contra o Estatuto. Muitos catalães sentiram-se ultrajados. “Eu quero respeito. E não sou respeitado por Madrid”, diz Òscar Palau, editor do jornal nacionalista El Punt Avui

“O PP está a calcular que não vai ganhar nem um voto na Catalunha para as eleições europeias [do fim de Maio] e sabe que se atacar a Catalunha vai ganhar votos noutras partes de Espanha. É pura estratégia eleitoral”, analisa Xavier Mas de Xaxás, jornalista do diário catalão La Vanguardia, o único dos jornais da região que não defende a consulta nem a independência. 

Igualdade de oportunidades

É uma história antiga, o nacionalismo catalão e o nacionalismo espanhol alimentam-se um ao outro. “Se me dissessem, há cinco anos, que hoje estaríamos aqui, neste momento de mobilização, eu não acreditaria”, diz Monserrat Radigales, correspondente internacional do jornal El Periódico. Radigales fala de uma série de leis que este Governo tem feito aprovar no sentido do reforço da centralização e do ataque às autonomias. “A interpretação da Constituição tem sido muito regressiva e daí vem este sentimento de frustração que aumentou o sentimento independentista.” Para Carme Colomina, editora do jornal catalão Ara, “o debate não é entre independência e statu quo”. “O statu quo está a recuar, o Governo é forte e vai tirar-nos mais direitos.”

Fala-se de dinheiro neste debate e do poder para gerir a partir de Barcelona uma parte maior dos impostos dos catalães, mas fala-se também de autonomia para gerir as universidades da região, o aeroporto de Barcelona, os comboios de alta velocidade que Madrid insiste em fazer passar pela capital ou da questão a que os catalães são mais sensíveis, a língua. O Governo central quer pôr fim ao sistema de “imersão” em vigor nas escolas catalãs – as aulas são todas em catalão, menos o ensino do castelhano, partindo da ideia de que o castelhano está mais presente, na televisão ou no cinema, e que assim se garante igualdade de oportunidades para todos os alunos, quer em casa se fale não catalão.

Foto
O cordão humano de 400 km no dia nacional da Catalunha, a 11 de Setembro, também na capital catalã LLUIS GENE/AFP

“Quando o ensino obrigatório acaba, os alunos são competentes em castelhano e em catalão, e o nível de castelhano não é inferior ao dos alunos de outras regiões. É um sistema que foi várias vezes elogiado, que funciona há 30 anos sem ser questionado”, diz Radigales, citando estudos da UNESCO. “Os meus filhos falam tão bem castelhano como falam catalão, inglês e alemão”, garante a alemã Krystyna Shreiber, mãe de três filhos, há 12 anos a viver em Barcelona. Shreiber integra a Assembleia Nacional Catalã e não é a única estrangeira no movimento independentista. “É um movimento democrático e necessário”, diz a alemã, antes de falar de uma “Catalunha mais solidária”. Dá exemplos como o derrame do Prestige na Galiza, em 2002, estava o PP no poder: “Não houve consequências e foram os catalães e outros voluntários que lá foram limpar.”

Nacionalismo e populismo

O nacionalismo catalão não é étnico, nem podia sê-lo. A Catalunha tem 7,5 milhões de habitantes, mas basta olhar para os apelidos para perceber que a maioria tem pelo menos um dos pais com origem noutra parte de Espanha. Num jantar com jornalistas ou num almoço com representantes dos grupos parlamentares, o exercício repete-se e a conclusão é a mesma. “Não sei como é que fizemos, mas integrámos sempre as pessoas”, diz Salvador García-Ruiz, presidente do conselho de administração do Ara, com mãe andaluza.

“Há 80% que dizem que querem votar e perto de 70% não são catalães em termos étnicos”, nota Oriol Pujol, secretário-geral da Convergência e filho do líder histórico catalão, ex-presidente da região, Jordi Pujol. “Eu também sou catalão, represento centenas de milhares de catalães e sou contra o referendo”, responde Juan Milián, deputado do PP catalão. “Talvez haja uma maioria social que quer o referendo, mas todos temos de respeitar as leis. Se for possível fazer um referendo, de uma forma legal, então todos os espanhóis devem poder votar.”

Pujol e Milián estão sentados à mesa com representantes da Esquerda Republicana (ERC), Iniciativa Catalunha Verdes (ICV), Cidadãos, Candidatura de Unidade Popular (CUP, independentistas de esquerda que entraram no parlamento catalão em Novembro de 2012, a primeira vez que concorreram às regionais). A representante do Partido Socialista da Catalunha atrasou-se tanto para o almoço que já não participou na conversa — o PS chegou a defender a realização da consulta, mas aposta agora numa revisão constitucional que abra caminho ao que chama “uma Espanha verdadeiramente federalista”.

Há momentos em que é possível fazer perguntas aos representantes dos partidos catalães, outros em que eles se esquecem da presença dos jornalistas. Acontece quando Jordi Solé, da ERC, recorda o encontro de Janeiro do PP, em Barcelona. “Quando Rajoy veio cá, compararam-nos aos terroristas da ETA”, diz. “Isso não é verdade, eu estava lá”, dispara Milián. “Eles querem assustar-nos, é isso que fazem”, continua Solé. “A comparação exacta foi com o País Basco. Alguns bascos pensaram que a violência seria a melhor maneira de conseguir a independência e o movimento de independência catalão foi sempre absolutamente pacífico”, interrompe Pujol. “Isso é verdade”, concede Milián.

Até agora, houve apenas um incidente violento nesta disputa, quando um grupo de extrema-direita atacou a delegação da Generalitat em Madrid, no último 11 de Setembro.

No parlamento, a troca de palavras acalma para logo se voltar a atiçar, numa exaltação pontuada aqui e ali por sorrisos educados, espécie de apertos de mão à distância. “Não é verdade que o presidente do meu partido tenha comparado o movimento independentista catalão com a violência da ETA. Mas os partidos nacionalistas tentam descrever os nossos discursos como sendo contra a Catalunha, contra os catalães”, contra-ataca o deputado do PP. Junta-se Quim Arrufat, das CUP: “Eles só repetem as justificações para não haver possibilidade de deixar as pessoas votar. E nós estamos a tentar convencer nem sei quem, porque Madrid não está a ouvir, que uma consulta não pode ser uma coisa má.” 

José Maria Espejo-Saavedra, deputado do Cidadãos (centristas não nacionalistas), defende que o nacionalismo actual é fruto do populismo de políticos que culparam Espanha pela crise. “Se compreendermos esta vontade de realizar uma consulta sobre a independência como fruto do populismo, resultado da crise, então digam-nos que temos de esperar para perceber se é isso ou algo mais. Mas não é isso que nos dizem, não há qualquer expectativa de que a consulta se possa realizar. Esperam que daqui a dez anos isto desapareça? Todas as pessoas que têm participado nas manifestações, pelo menos metade dos eleitores que a cada sondagem se dizem a favor da independência… Isto vai desaparecer?”, pergunta Arrufat. “A opinião pública move-se. Daqui a cinco, dez anos, a opinião geral pode ser diferente”, diz Espejo-Saavedra. “Isso querias tu”, ouve-se, de pontos diferentes da mesa.    

Um debate à volta do dinheiro

Nas ruas, muitas com bandeiras independentistas às janelas, e nas bancadas parlamentares, parte deste debate faz-se de facto à volta de dinheiro, do dinheiro que, segundo Barcelona, Madrid fica a dever todos os anos à região. É o défice entre os impostos recolhidos na Catalunha e o dinheiro que o Governo central devolve e que, nas contas da Generalitat, equivale a 8% do PIB catalão. Sejam quais forem as contas, o défice existe sempre, visto de Madrid é atenuado, porque aqui entram gastos como os do Museu do Prado ou do serviço diplomático, que a capital diz caberem a todos os espanhóis. 
“Isto não é uma região rica a querer fugir em tempo de crise”, garante Andreu Mas-Colell, conselheiro (equivalente a ministro) da Economia e do Conhecimento. “O tema vai persistir. Quando a crise tiver passado, se não tiver havido consulta, vai ser um assunto por resolver.”

Miguel Puig, economista e director de um consórcio de universidades catalãs, recorda que numa sondagem de Setembro se perguntou aos catalães que se diziam a favor da independência o que fariam se Madrid oferecesse à Catalunha o pacto fiscal que mudava esta relação e que Artur Mas propôs a Rajoy em 2012. “Só 5% desistiam da independência. Apesar de a questão fiscal ser importante, alguma coisa aconteceu entretanto que mudou tudo. É uma questão de dinheiro, mas é muito mais.”

Há uma pergunta que os jornalistas repetem no parlamento e que os deputados que são contra o referendo têm dificuldade em responder. O que ganha a Catalunha ao ficar em Espanha? Milián ensaia uma resposta, mas acaba preso à campanha do seu partido, Direito a Saber, por oposição ao Direito a Decidir, enumerando os riscos de uma sucessão. “Agora, o governo catalão pode pagar aos seus fornecedores por estar num Estado que tem acesso aos mercados. A maioria dos catalães tem família noutras partes de Espanha, os meus pais são de Valência; para mim, ter uma fronteira entre mim e eles seria um choque.” Sim, e motivos para ficar? “Sim, precisamos de fazer uma campanha mais positiva, como a do Governo britânico para os escoceses, Better Together.”

Fronteiras? Fim do acesso aos mercados? Imaginar que Espanha ergueria muros ou promoveria qualquer tipo de boicote à economia catalã “viola a racionalidade”, diz Jordi Galí, economista e professor da Universidade Pompeu Fabra. “Impor taxas alfandegárias às exportações catalãs? E o que fazer com os 70% a 80% de exportações espanholas que passam pela Catalunha?”, pergunta. 

Foto
Saudações fascistas numa manifestação pela união espanhola em Outubro, que juntou em Barcelona dezenas de milhares de pessoas QUIQUE GARCIA/AFP

“Barrar a Catalunha da livre circulação de pessoas e bens é absolutamente impossível do ponto de vista do interesse das grandes empresas”, diz Carles Boix, professor de Políticas Públicas em Princeton e membro do Conselho Assessor da Transição Nacional, órgão criado para assessorar a Generalitat neste processo. As 5100 multinacionais com sede na Catalunha alimentam esta convicção. “São muito mais poderosas do que Rajoy.” Metade das empresas alemãs a operar em Espanha estão na Catalunha, recorda Miguel Puig. “O que passa na fronteira não vai deixar de passar. Nem que [a chanceler alemã, Angela] Merkel tenha de telefonar a Rajoy.”

Ficar na UE

Em Dezembro, a Generalitat enviou a todos os chefes de governo da União Europeia uma carta a explicar o processo soberanista. No texto, insiste-se no carácter “democrático e pacífico” do caminho iniciado e explica-se que, ao contrário do que diz Madrid e do que já sugeriu o presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso, “não é verdade” que a independência tenha de significar a saída automática da Catalunha da UE — isto porque, como também defendem os escoceses, que votarão a independência em referendo a 18 de Setembro, os tratados da União não antecipam o cenário em que uma parte de um país que já é membro se torna independente. 

Barcelona insiste na vontade catalã de permanecer na UE e tem a convicção de que Bruxelas acabará por encontrar uma solução que o permita. “Os tratados europeus são tratados entre países, mas também são tratados de pessoas, que dão direitos específicos às pessoas”, diz Artur Mas. “Há artigos que estipulam como é que um Estado se pode juntar à UE e há artigos sobre a expulsão, não se pode expulsar um Estado assim, só porque sim. E se um novo Estado tiver a vontade política de ficar, se cumprir todos os critérios e se for um contribuinte líquido para o orçamento europeu, então não vejo razões para a expulsão.”

Madrid também enviou um relatório a todas as suas embaixadas, em que fala da ilegalidade da consulta e apresenta a sua versão dos riscos de uma Catalunha independente.

Madrid fez mais do que isso. “Cada vez que um membro da Comissão Europeia tomou uma posição que não agradava, Espanha forçou uma mudança dessa posição. A primeira vice-presidente da Comissão, por exemplo, Viviane Reding, disse há um ano que seria ultrajante se a Catalunha deixasse a UE”, recorda Roger Albinyana, secretário dos Assuntos Externos e Europeus do governo da Catalunha. Ou quando os chefes de governo da Lituânia e da Letónia assumiram posições positivas sobre o processo catalão, “o Governo chamou os embaixadores dos dois países em Madrid e o ministro [dos Negócios Estrangeiros, José García] Margallo fez um périplo de uma semana pelos Bálticos, o primeiro da história de Espanha”.

Albinyana está à frente de uma unidade na Generalitat onde 150 pessoas trabalham, de Barcelona a Nova Iorque, para “tentar construir redes de comunicação com os países, algo que ainda não pode ser feito de maneira formal por [serem] uma região”. Para Albinyana é mais do que natural que quase nenhuns líderes falem em público sobre a Catalunha e que a resposta oficial seja que este “é um assunto interno de Espanha”. Mas garante que há diferenças entre o que os chefes de governo dizem em público e em privado: “Em alguns países há uma diferença muito grande. Os países que na sua história encontram semelhanças com o nosso processo têm mais sensibilidade. Tenho de manter confidencialidade, mas posso dizer que nalguns importantes países europeus há uma grande preocupação com o facto de Madrid não querer negociar.”

E é também por isso que esta é uma batalha cada vez mais travada no palco internacional, que agora Artur Mas dá entrevistas a jornalistas estrangeiros. E que amanhã, em Lisboa, especialistas portugueses, incluindo Adriano Moreira, e catalães vão debater O Processo Político na Catalunha, numa conferência organizada pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e pela Diplocat — Conselho de Diplomacia Pública da Catalunha. De Barcelona virão Francesc Homs, conselheiro da presidência da Generalitat, e Francesc Vendrell, professor de Relações Internacionais, ex-representante internacional no Afeganistão e chefe adjunto da missão da ONU em Timor-Leste durante o processo que conduziu à independência.  

O futuro

“Eu passei três meses em Edimburgo, lá debate-se o projecto de uma Escócia independente. Nós, em vez de estarmos a debater o futuro, ainda estamos a discutir se podemos ou não votar e não conseguimos sair disto. A única possibilidade é convencer a comunidade internacional a pressionar Madrid”, desabafa o jornalista Òscar Palau.

Falemos então de futuro. “Vemos a independência como uma ferramenta para transformações económicas e políticas profundas, no caminho para uma democracia mais radical. Não acreditamos que isso possa ser possível em Espanha, mas pode ser feito na Catalunha. Conhecemos a sociedade catalã, os seus valores”, diz Arrufat, o deputado das CUP. Não muito diferente do que ouvimos ao economista Jordi Galí, que quer um “Estado catalão que dê prioridade ao bem-estar da população catalã” e que acredita que só “circunstâncias especiais”, como seria a independência, podem “trazer de volta à política as mentes mais brilhantes”.

Murie Casals, presidente da Òmnium Cultural, uma organização que promove a língua e a cultura catalãs, responde de forma simples ao que mudaria na sua vida se a Catalunha fosse independente. “Eu seria mais feliz”, diz. “E é melhor ter um bom vizinho contente do que um familiar desavindo.” Falando numa “sociedade espanhola agrária” face a uma “sociedade catalã industrial”, movida sempre pela classe média, Casals diz que os catalães são mais pragmáticos e democráticos. “Espanha tem a mentalidade do conquistador, nós temos uma mentalidade de negociadores.”

Artur Mas também fala de democracia e da tradição negociadora da Catalunha. “Temos um parlamento esmagadoramente a favor do direito a decidir, temos manifestações maciças e temos sondagens que dão a maioria à independência. Mas eu acredito que não podemos proclamar a independência, se não conhecermos a maioria real”, diz. O referendo, então. E depois? “Teremos de ir a Madrid negociar e a Bruxelas também. Se o resultado do referendo for a independência, então essa independência terá de ser negociada.”

Artur Mas, diz o seu secretário dos Assuntos Externos, “sabe que não será o primeiro presidente de uma Catalunha independente”. “Quer ser ele a conduzir o processo, mas acredita que terá de emergir uma nova geração de políticos que vai conduzir a Catalunha daí em diante”, afirma Albinyana. 

Se Artur Mas quiser mesmo que os catalães votem enquanto for presidente e se Madrid fizer, como se espera, tudo o que está ao seu alcance para impedir o referendo, resta-lhe uma última possibilidade – convocar eleições com a proclamação da independência como único ponto do programa. A 9 de Novembro ou não, há mesmo qualquer coisa que está para acontecer. “Se não pudermos realizar a consulta, então, no máximo até 2016, teremos eleições e essas eleições serão a consulta. Nós teremos sempre a resposta dos catalães.”

Artigo corrigido às 13h17 de domingo: onde estava "Faculdade de Letras" passou a estar, correctamente, Faculdade de Direito.

Foto
Membro das CUP queima uma fotografia do rei Juan Carlos no dia nacional da Catalunha LLUIS GENE/AFP
Sugerir correcção
Ler 1 comentários