Crítica de teatro: a revista está viva porque nunca esteve morta

O Teatro Praga atira-se à revista e faz, em Tropa Fandanga, uma revisitação da história do país. É Portugal ao espelho a rir-se do seu destino.

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João Duarte Costa e Diogo Lopes dizem um excerto de "Tropa-Fandanga" Ricardo Rezende

Ao abrir da cortina, depois de esclarecido ao que vamos, os dourados do palco e dos panos de cena do Dona Maria II inebriam. Dir-se-á quase no fim que parecem a boca de um romeno, ao melhor estilo brejeiro, como se o pudor há muito tivesse sido abandonado. O que se revela na cena aberta e generosa é um desejo de construir não uma homenagem a um género que todos dizem que morreu mas usá-lo em toda a sua força para olhar para o passado e pensar o ponto onde estamos.

Tropa Fandanga é uma surpresa a todos os níveis, tanto para os que há muito acompanham o Teatro Praga e lhe reconhecem a capacidade de inventariar, e inventar, novos modos de pensar o teatro, como para os que criticam na companhia a exposição dos mecanismos teatrais a troco de um exibicionismo tendencialmente cínico.

O cenário não é, por isso, um detalhe. Assinado por José Capela, co-director artístico e cenógrafo da companhia Mala Voadora, é um primor de dedicação e discrição que dialoga com esses extremos onde o Teatro Praga tem sido colocado e permite, através de apontamentos cenográficos que evocam paisagens, fachadas de edifícios e símbolos-fétiche nacionais, dar margem a que o texto possa existir sem pruridos, fazendo conviver referências eruditas e populares.

O texto, na sua riqueza argumentativa, usa habilmente o truque comum do teatro de revista que é a possibilidade de actualização constante, por os espectáculos estarem vários meses em cena. Assim, tal como o trabalho cenográfico propõe uma dramaturgia que se oferece ao texto, também o texto se entrega a um modelo funcional, onde o passado recente é revisto de forma cirúrgica, evocativa, convocando a expectativa do espectador. Cabe lá o país todo e é por isso que podemos rir. Nem sempre dos outros, muitas vezes de nós.

Concorre para esta organização uma absorvente direcção musical de João Paulo Soares (com canções originais de Sérgio Godinho), que cria, entre os diferentes quadros, e dentro deles, rimas sonoras que estimulam a atenção e proporcionam delicadas pontes entre os novos números e a revisitação da memória da revista.

São três, então, os elementos que, a par de um jogo contrastante promovido pelos figurinos, de Joana Barrios, e os telões assinados por diferenres artistas plásticos (Barbara Says…, Vasco Araújo, Pedro Lourenço e João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira), fazem mais do que recriar o teatro de revista.

É um espectáculo por inteiro que não faz a defesa cega da revista nem cede na gratuitidade que é a ideia de fim a ela associada. Fado, futebol, Fátima, alma portuguesa, reality shows, desemprego jovem, traumas históricos, emigração e cérebros em fuga vão surgindo como retrato de um país.

A surpresa de Tropa Fandanga vem, afinal, do modo como todo o esquema de revista é exposto e trabalhado. Mesmo que os preceitos do género fossem, desse há algum tempo, e com a devida estilização, perceptíveis no discurso da companhia, Tropa Fandanga é uma surpresa pela humildade com que a companhia trabalha um género teatral cheio de regras mas visto como secundário. Aquelas que eram as características do Teatro Praga encontram-se, afinal, diluídas num exercício de inteligência que é muito mais contido e controlado do que a máquina que vemos em palco deixa supor.

Aos Praga apontava-se uma consciência aguda de que a máquina teatral, sendo um jogo de efeitos e de ilusão, não deveria ser denunciada. Nunca foi desenrascanço. Em ano de centenário da Primeira Guerra Mundial e dos 40 anos da revolução de Abril, o que o Teatro Praga faz é, afinal, enfrentar as características da revista à portuguesa para transformar numa história teatral a história do país em crise.

Em 2013, com A Tempestade e Terceira Idade, o Teatro Praga falava de um fim de ciclo e de um desejo de superação. Não imaginávamos que o passo, arriscado, fosse tão bem sucedido. Se a revista morreu, chamamos o quê a Tropa Fandanga? Revista, e ‘mai nada.

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