Queimar sábios: manual de instruções

A FCT tem estado sintonizada com o Governo não só na sua tendência para a precipitação, a trapalhada e a ilegalidade, mas também no carácter destrutivo do seu programa.

A convicção resume-se numa frase: o Estado assumiu demasiadas responsabilidades na Ciência, na Cultura e na Educação. Que não tenha havido o cuidado de verificar se a realidade sustenta a convicção é natural num troglodita. Que a convicção do troglodita se tenha tornado política de um governo inteiro contra o próprio programa eleitoral é decerto uma anomalia, talvez explicável pela boa projecção vocal do primeiro-ministro (o único barítono a conseguir, em anos recentes, um emprego de solista no Estado).

Esqueçamos por momentos a Cultura e a Educação, que há muito se arrastam pelas ruas da amargura, e foquemo-nos na Ciência, que tinha sido poupada, até há pouco, a grandes comoções. Na verdade, a Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) tem tomado sucessivamente medidas que tendem para o mesmo resultado: esvaziamento das responsabilidades estatais, com presumível favorecimento de domínios científicos ligados a instituições ou interesses económicos privados.

Anunciada vagamente como “um novo paradigma”, e repetidamente justificada pela alegada busca de “excelência”, a nova orientação foi finalmente caracterizada pelo primeiro-ministro como uma reafectação do investimento público (de resultados alegadamente fracos) para “ter mais gente ao lado das empresas”. Embora mais uma vez a avaliação esteja errada e se confunda o desejo com a realidade, estas declarações têm a seu favor uma cavernícola franqueza.

A FCT tem estado sintonizada com o Governo não só na sua tendência para a precipitação, a trapalhada e a ilegalidade, mas também no carácter destrutivo do seu programa, implementado em quatro passos.

O primeiro passo foi correr com os investigadores contratados por cinco anos ao abrigo dos programas Ciência 2007/2008 (escolhidos por concurso internacional, com júris da área da especialidade, correspondendo às necessidades científicas identificadas pelas unidades de investigação com melhor avaliação externa e inseridos em projectos no terreno). Bastou o atraso do primeiro concurso Investigador FCT para que muitos dos mais capazes começassem a concorrer a lugares mais estáveis e bem pagos no estrangeiro. Depois veio o concurso: número irrisório de vagas, painéis de avaliação onde nem todos os domínios científicos estavam representados, critérios bibliométricos impostos a eito independentemente do domínio em questão, impossibilidade de atestar a relevância profissional através de pareceres externos. Resultado: razia de investigadores de topo a favor de um número diminuto de cientistas com projectos de trabalho individuais, frequentemente novos, levando à desarticulação de equipas e ao abandono ou suspensão de trabalhos em curso. No concurso seguinte, ao invés de se corrigir o tiro, a arbitrariedade foi elevada a regra de ouro.

O segundo passo foi o concurso para financiamento de novos projectos de investigação em todas as áreas científicas. A FCT preparou-se para não financiar a excelência, criando nada menos que duas categorias acima do “excelente”, o “excepcional” e o “excepcional mais”, e cumpriu: em muitas áreas científicas (possivelmente não em todas), o financiamento foi excepcional ou ainda menos que isso.

O terceiro passo, mais recente, foi reduzir drasticamente o número das bolsas individuais de doutoramento e pós-doutoramento e condicionar a sua aprovação à ligação do programa individual de trabalho a projectos em curso: ao primeiro funil sobrepôs-se um segundo. Os recursos para a investigação diminuíram substancialmente em vários domínios. Centenas de jovens investigadores foram lançados no desemprego (sem subsídio ou Segurança Social) e incentivados a emigrar.

O quarto passo está ainda em curso, com um objectivo previamente anunciado: a redução em 30% do financiamento das estruturas de investigação no período 2015-2020.

Estes passos, com Passos atrás, diminuem a capacidade científica do país, já de si inferior à média europeia, castigando a investigação fundamental e áreas onde o investimento privado ou o acesso a fundos europeus são, e continuarão, residuais. O castigo inclui domínios estratégicos como a Oceonografia, fundamental para as pretensões portuguesas de conhecer e tirar partido da nossa extensa plataforma continental, ou a Língua e Literatura, fundamentais para a nossa projecção internacional tendo em conta que o português é a língua mais falada no mundo abaixo do Equador.

Que esta política sapa os fundamentos estruturais de onde a excelência pode brotar não escapou à comunidade científica nacional. A FCT alega que o investimento científico não baixou significativamente: haveria que averiguar se ele foi desviado para áreas onde imperam os interesses privados, e se houve reforço da dotação nos domínios científicos mais próximos do presidente da FCT, em detrimento dos que não lhe são simpáticos. Enquanto esperamos por esse esclarecimento, importa notar que esta política tem consequências que vão muito para além da actividade científica.

De facto, a crónica suborçamentação do ensino universitário tem-se agravado enormemente. Isto tem levado as universidades a depender cada vez mais das rubricas de “gastos gerais” dos projectos de investigação para poderem pagar salários; tem também levado à diminuição dos contratos permanentes, ao recurso a bolseiros para tarefas de leccionação e ao acelerado envelhecimento do quadro de professores. A política de cortes de contratos, projectos e bolsas na FCT pôs à beira do abismo muitas das melhores instituições nacionais de ensino universitário.

Também a recuperação e estudo do património histórico e artístico tem estado quase exclusivamente dependente de projectos de investigação financiados pela FCT no domínio das Ciências Sociais e Humanas, já que há muitos anos nem os museus e teatros, nem as bibliotecas e arquivos têm pessoal ou verbas para tratar e explorar condignamente os seus espólios.  A política deste Governo não se limita, assim, a comprometer o futuro: também nos rouba todo um passado.

Não fora Passos um filisteu, pudera ter rematado o seu comentário sobre a Ciência pondo versos exactos nos próprios lábios: “Vendo bem, incendiámos tudo: Alexandria — e os sábios.”

Membro da Academia Europeia das Ciências, coordenador do Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical (Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa)

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