Passam-se anos. E então, pontualmente, reemerge esta necessidade de tomar o pulso ao momento, saber de que matéria é feito. O resto é inevitável: sempre que olhamos para o presente levantamos o passado e deixamos que uma parte do futuro se insinue.
Foi assim em 1992, quando Alexandre Melo comissariou para Serralves a exposição 10 Contemporâneos. Repete-se agora que a mesma instituição se prepara para inaugurar 12 Contemporâneos– Estados Presentes, desta vez com comissariado de Suzanne Cotter, a nova directora do museu, e Bruno Marchand, recente responsável pela programação da Chiado 8, em Lisboa.
“A mesma instituição”, dizíamos – força de expressão; 22 anos volvidos, Serralves é e não é o mesmo lugar, tal como Portugal é e não é o mesmo país.
O que se passou e o que se passa aqui
Por então, faltavam quatro anos para Serralves lançar a primeira pedra do seu museu e sete para o inaugurar; Portugal entrara para a CEE praticamente na véspera e lançava-se no seu devir auto-estrada antes mesmo de passar pela casa da partida de um teatro ou galeria de arte.
Julião Sarmento, Pedro Cabrita Reis, Pedro Calapez, José Pedro Croft, Rui Sanches, Pedro Portugal, Pedro Proença, Gerardo Burmester, Pedro Casqueiro e Rui Chafes: nessa altura, foram os protagonistas escolhidos.
10 Contemporâneos tanto fechava a década de 1980 como abria a de 90 assumindo os seus eleitos como agentes operativos da transição entre um tempo e outro.
“Para mim, essa exposição surgiu na sequência de praticamente uma década a escrever quase diariamente sobre e com artista plásticos que faziam parte integrante da minha vida quotidiana”, recorda Alexandre Melo. “Era um ponto de chegada do meu trabalho e da minha visão sobre quais seriam os pontos chave dessa enorme transição que se deu na década de 1980 nas artes plásticas.”
Que transição? Afinal de que falamos hoje quando nos referimos a um mundo de há já três décadas? Existiu uma “arte dos anos 1980” em Portugal? Não, diz Melo: “Quando se diz ‘a arte dos anos 1980’ não se está a dizer absolutamente nada, a não ser do ponto de vista sociológico.”
A prova está na diversidade de modos discursivos dos artistas incluídos em 10 Contemporâneos – e precisamente por isso a abordagem de Melo para a leitura do momento é a sociológica: “10 Contemporâneos articulava-se com o que se esperava que fosse uma dinâmica de emergência para um mercado da arte em Portugal”, diz.
No Portugal do PREC e da Reforma Agrária da década de 1970 e princípio da década de 1980 esse mercado tinha deixado de existir. Depois, a cortar com uma época em que os artistas eram considerados jovens pelo menos até aos 40 ou 45 anos, deu-se um fenómeno “curioso”: “Num período de tempo muito curto, apareceu um conjunto de novos nomes que passaram de desconhecidos a figuras centrais.”
Julião Sarmento e Pedro Cabrita Reis lançaram então as duas mais bem sucedidas carreiras internacionais da segunda metade do século XX português – as duas primeiras grandes carreiras internacionais de artistas portugueses a viver em Portugal. Isto, recorda Melo, quando nos anos 1980 ainda era muito comum aparecerem biografias de artistas importantes com listas das viagens internacionais – não das exposições, das viagens...
De então para agora, a grande transformação foi precisamente essa, sublinha este crítico e comissário: a transformação decorrente da transição de um mundo em que “as idas a Espanha tinham uma dimensão épica” para um mundo em que a formação e muitas das primeiras exposições individuais se fazem no estrangeiro.
E é esta última realidade que Suzanne Cotter primeiro sublinha.
“Ouvir os artistas e as suas dúvidas é interessante: o que mais têm questionado é porque estão a expor aqui só entre portugueses, porque não entre internacionais?”
Quando recebe o Ípsilon, a quase duas semanas da inauguração de 12 Contemporâneos– Estados Presentes e com a montagem da exposição ainda em fase inicial, a nova directora do Museu de Serralves, chegada há um ano a Portugal, explica porque surge agora, neste momento, este gesto: “Como tentativa de resposta à minha pergunta fundamental: o que se passa aqui [em Portugal]?”
E o que se passa não guarda surpresas – uma profunda malaise: “Uma ansiedade das pessoas, em geral, e dos artistas, que também são pessoas.”
Energia e precaridade
André Sousa, Ana Santos, Carla Filipe, Gabriel Abrantes, Mauro Cerqueira, Nuno da Luz, Pedro Barateiro, Pedro Lagoa, Priscila Fernandes, Sérgio Carronha, Sónia Almeida, !Von Calhau! (Marta Ângela e João Alves): depois de ver o trabalho de 50 artistas, fizeram-se escolhas – foram os que ficaram. Foi através deles que Cotter e Bruno Marchand decidiram “medir a temperatura do momento”.
Têm percursos e obras diversas, uns expuseram antes em Serralves, outros não [ver biografias], mas “todos estão a falar deste tempo”.
“Um pouco por toda a exposição se pressente uma energia que tem a ver com a ideia de precariedade, de recuperar realidades que se tornaram obsoletas”, diz Bruno Marchand.
Mauro Cerqueira com os despojos de uma antiga tipografia, Ana Santos e a poética dos seus materiais pobres, a mística existencialista da terra de Sérgio Carronha, as viagens de pendor antropológico de Gabriel Abrantes, as pesquisas sobre as identidades comunitárias e a memória das formas de vida pós-industriais de Carla Filipe: é uma voragem “própria da vida no capitalismo tardio”, diz Bruno Marchand.
“Um dos temas da exposição através das obras acabará por ser a deslocação. Coisas que nos tiram do nosso lugar e nos levam para outro”, diz por outro lado Suzanne Cotter. “As coisas estão em transformação, em movimento.”
Depois, refere ainda Cotter, há que ter em consideração “uma dinâmica [contextual] que é muito multíplice”.
O tipo de propagação ou dispersão antecipado pelo título de outra das grande exposições geracionais feitas nas últimas décadas em Portugal: Disseminações, que Pedro Lapa comissariou para a Culturgest em 2001.
Rui Toscano, João Onofre, Leonor Antunes, Francisco Queirós, Filipa César, Nuno Sacramento, Ana Pinto, Inês Pais e Ana Pérez-Quiroga: quase todos estes artistas – menos Rui Toscano, que vinha da década anterior – tinham então muito pouco tempo de trabalho, recorda Lapa.
Em certos pontos, davam continuidade a problemáticas que tinham começado a enunciar-se pela geração reunida na mostra Imagens para os anos 1990, comissariada por Fernando Pernes e Miguel von Hafe Pérez [ver texto nestas páginas]. Era assim em termos da proliferação de sentidos que atribuíam ao objecto artístico. No entanto, diz Pedro Lapa, “as redes de entendimento que esse objecto convocava eram completamente diferentes”.
Diferentes também, por exemplo, do chamado regresso à pintura que os anos 1980 tentaram reabilitar.
Pedro Lapa lembra-se, por exemplo, de durante a montagem da exposição, de repente, quase todos quererem apresentar vídeo, espelhando um momento marcado por uma interrogação do papel da imagem e da imagem-tempo deleuziana.
“As transformações que a imagem estava a sofrer tinha que ser interrogada”, conta Lapa. “Hoje, essas questões não se colocam.”
Para Pedro Lapa, nos 13 anos que decorreram entre Disseminações e 12 Contemporâneos, houve, de novo, grandes mutações. “A partir de final de 2000 até 2008 muitas coisas se alteraram. O processo de que eu estava a dar conta em 2001 cresceu exponencialmente. A disseminação foi ainda maior”, diz.
É por isso, também, que faz sentido nova mise au point – momento de reajustar a definição da imagem que temos de nós.
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